Crise e interpretação no Direito Civil

CÉSAR FIUZA

INTRODUÇÃO

Com base na breve exposição acerca das várias escolas que cuidaram da interpretação jurídica, podemos contextualizar o tema da interpretação no Direito Civil na cartografia civilística, a partir de um enfoque teórico e prático. Para o sucesso do empreendimento, é fundamental entender a crise por que passa o Direito Civil, que vem causando um redesenho em sua geografia tradicional.
De plano, carece esclarecer que a palavra crise deve ser entendida num sentido positivo. Como superação de paradigmas, turning point, virada.
A crise do Direito Civil pode ser analisada sob diversos aspectos. Em primeiro lugar, a crise das instituições do Direito Civil, basicamente de seus três pilares tradicionais: a autonomia da vontade, a propriedade e a família. Em segundo lugar, a crise da sistematização. Em terceiro lugar, a crise da interpretação.

CRISE DAS INSTITUIÇÕES

As instituições de Direito Civil foram tradicionalmente aprisionadas em quatro grandes ramos, quais sejam, o Direito das Obrigações, o Direito das Coisas, o Direito de Família e o Direito das Sucessões. Assim está disposta a matéria nas grandes codificações dos sécs. XIX e XX, assim se a ensina nos cursos de Direito. Na verdade, procedendo a um corte epistemológico, descobre-se que o sustentáculo desses quatro grandes ramos é, tradicionalmente, a autonomia da vontade, a propriedade e a família.
O Direito das Obrigações tem como principal escopo o estudo e a regulamentação dos contratos. Sendo eles entendidos, classicamente, como fenômeno volitivo, calçam-se na autonomia da vontade, princípio vetorial de todo o Direito das Obrigações. É evidente que não constitui o único princípio, mas é o principal. Em outras palavras, os contratos só podem ser entendidos como fruto da autonomia da vontade.
O Direito das Coisas, das Sucessões e mesmo o das Obrigações sustentam-se em outro fenômeno fundante, qual seja, a propriedade privada, o patrimônio, o ter, o possuir.
Por sua vez o Direito de Família e o Direito das Sucessões giram em torno da família, “célula mater” da sociedade, segundo as palavras do próprio texto constitucional de 1988. 
Veremos, entretanto, que estes três pilares entraram em crise, principalmente diante do paradigma do Estado Democrático de Direito, o que veio a acarretar graves conseqüências gerais e, especificamente, para a interpretação no Direito Privado.
A Revolução Industrial, estimulada pelos dogmas do liberalismo econômico e político, gerou dois efeitos importantes. Por força de um deles, construiu-se a teoria clássica do Direito Civil; por força do outro, toda esta teoria teve que ser revista. Por mais estranho e paradoxal que possa parecer, o fenômeno se explica.
               O liberalismo congregava a sociedade (economistas, juristas e políticos) em torno do laissez-faire. O liberalismo não era só doutrina econômica. Encontrava fundamentos religiosos (a ideia cristã do homem como valor supremo, dotado de direitos naturais) e fundamentos políticos (oposição ao ancien régime, por demais opressivo
              A teoria jurídica se assentava sobre alguns dogmas
             1º) oposição entre o indivíduo e o Estado, que era um mal necessário, devendo ser reduzido;
             2º) princípio moral da autonomia da vontade: a vontade é o elemento essencial na organização do Estado, na assunção de obrigações etc.;
             3º) princípio da liberdade econômica;
             4º) concepção formalista de liberdade e igualdade, ou seja, a preocupação era a de que a liberdade e a igualdade estivessem, genericamente, garantidas em lei. Não importava muito garantir que elas se efetivassem na prática.
             Este estado de coisas vem até o final do século XIX, início do século XX.
            A exaltação kantiana da vontade criadora do homem, fez o Código Civil Francês abolir a transcrição e a tradição, passando o simples consenso a ser o meio de transmissão da propriedade. Foi também por influência de Kant, segundo Fernando Noronha, que os pandectistas alemães engendraram a ideia de negócio jurídico, enquanto manifestação de vontade produtora de efeitos.
            Planiol, em 1899, proclamava que a vontade das partes forma obrigação nos contratos; a Lei apenas sanciona essa vontade criadora. (PLANIOL, 1906: 310/320)
            No final do século XIX e no século XX, nasce o chamado Estado Social. Há muito, políticos e economistas haviam abandonado a ideia do liberalismo. Os juristas continuavam, contudo, apegados à ideia da autonomia da vontade. Não por puro conservadorismo, mas por força do modelo tradicional de contrato, que continuava imperando na prática. Quando a massificação chegou ao campo jurídico-contratual, é que se começou a rever esses conceitos.
            Assim, temos que o liberalismo e o individualismo resultaram do capitalismo mercantilista. Com a Revolução Industrial, que começa na Inglaterra, já no século XVIII, a sociedade se transforma. Dois fenômenos importantes ocorrem: a urbanização e a concentração capitalista, esta conseqüência da concorrência, da racionalização etc.
            Esses dois fenômenos resultaram na massificação das cidades, das fábricas produção em série), das comunicações; das relações de trabalho e de consumo; da própria responsabilidade civil (do grupo pelo ato de um indivíduo); etc.
            A massificação dos contratos é, portanto, conseqüência da concentração industrial e comercial, que reduziu o número de empresas, aumentando-as em tamanho. Apesar disso, a massificação das comunicações e a crescente globalização acirraram a concorrência e o consumo, o que obrigou as empresas a racionalizar para reduzir custos e acelerar os negócios: daí as cláusulas contratuais gerais e os contratos de adesão.
Toda essa revolução mexe com a principiologia do Direito Contratual. Os fundamentos da vinculatividade dos contratos não podem mais se centrar exclusivamente na vontade, segundo o paradigma liberal individualista. Os contratos passam a ser concebidos em termos econômicos e sociais. Nasce a teoria preceptiva. Segundo esta teoria, as obrigações oriundas dos contratos valem, não apenas porque as partes as assumiram, mas porque interessa à sociedade a tutela da situação objetivamente gerada, por suas conseqüências econômicas e sociais. É como se a situação se desvinculasse dos sujeitos, nos dizeres de Gino Gorla. (1971: passim)
Como se pode concluir, a mesma Revolução Industrial que gerou a principiologia clássica, que aprisionou o fenômeno contratual nas fronteiras da vontade, esta mesma Revolução trouxe a massificação, a concentração e, como conseqüência, as novas formas de contratar, o que gerou, aliado ao surgimento do Estado Social, também subproduto da Revolução Industrial, uma checagem integral na principiologia do Direito dos Contratos. Estes passam a ser encarados, não mais sob o prisma do liberalismo, como fenômenos da vontade, mas antes como fenômenos econômico-sociais, oriundos das mais diversas necessidades humanas. A vontade que era fonte, passou a ser veio condutor.
Conseqüência dessa massificação, do consumismo e das novas formas de contratar, o Direito Contratual entra em crise. Sua antiga principiologia, calcada nos ideais do liberalismo, já não serve mais. A autonomia da vontade é substituída pela autonomia privada, surge a teoria preceptiva, como já se disse. Vários outros princípios são revistos, relidos.
A coisificação do sujeito de direito, subproduto da visão de agente econômico, não se sustenta mais no Estado Democrático. A própria ideia tradicional de sujeito de direito gera verdadeira excludência do outro. O credor é titular, sujeito ativo, detentor de direito de crédito oponível contra o devedor, sujeito passivo, adstrito a realizar em favor do credor uma obrigação creditícia. Se a não cumprir, submeter-se-á a uma quase manus iniectio do credor, que poderá agredir-lhe o patrimônio. Mas e os direitos do devedor ? Este também é pessoa com direito à dignidade humana, sujeito de direitos fundamentais. Vê-se, claramente, que a ideia tradicional de sujeito de direito e mesmo de relação jurídica exclui os demais, realçando a figura do titular do direito, seja de crédito, seja real. Isso começa a mudar.
O patrimônio e a propriedade deixam de ser o centro gravitacional do Direito das Obrigações e do Direito das Coisas. Seu lugar ocupa o ser humano, enquanto pessoa, com direito à dignidade, à promoção espiritual, social e econômica. Fala-se, pois em função social do contrato, da propriedade. Fala-se em despatrimonialização do Direito Privado, principalmente do Direito das Obrigações. Nasce o Direito protetivo do Consumidor, acompanhado até mesmo de algum exagero “consumeirista”.
O conceito de propriedade, como “direito” de usar, fruir, dispor e reivindicar, já não serve mais. Primeiro, por ser excludente. Enfoca-se apenas a pessoa do titular, excluindo-se a coletividade, o outro. Segundo, por trazer em si a ideia de algo absoluto, intocável. Na verdade, o conceito de propriedade não precisa e não deve abandonar a ideia de situação ou de relação jurídica, sob pena de se desumanizar. Historicamente, o abandono da ideia de pessoa, sujeito de direitos, titular de relações jurídicas, só levou à arbitrariedade e a regimes ditatoriais. Propriedade passa a ser, pois, situação jurídica, consistente em relação entre o titular e a coletividade (não-titulares), da qual nascem para aquele direitos (usar, fruir, dispor e reivindicar) e deveres (baseados na função social da propriedade). Para a coletividade também surgem direitos, que se fundamentam, em sua maioria, na função social da propriedade, e deveres relativos aos direitos do titular. Em outras palavras, os não-titulares devem respeitar os direitos do titular.
A função social da propriedade seria, como se pode perceber, elemento externo ao conceito, fundamento dos deveres do titular e dos direitos da coletividade, ou seja, fundamento das restrições à propriedade.
O Direito de Família também está em crise. A mesma Revolução Industrial que gerou a crise do Direito das Obrigações, esta mesma Revolução conduz a mulher para o mercado de trabalho, retira o homem do campo, proletariza as cidades, reduz o espaço de coabitação familiar, muda o perfil da família padrão.
A mulher se torna mais independente e busca seu lugar ao sol. Já pode votar e ser votada. É cidadã. Apesar disso, ainda se vincula ao marido, considerando-se relativamente incapaz. Só a década de 1960 consegue libertá-la dos grilhões maritais. Entra em vigor o Estatuto da Mulher Casada. 
Mas foi outro subproduto da Revolução Industrial, a dita Revolução Sexual, dos anos 60 e 70, que acelerou a crise no Direito de Família. Já no fim da década de 70, separando-se de uma vez da Igreja, o Direito de Família passa a admitir o divórcio. Dez anos mais tarde, a Constituição Federal consagra o que doutrina e jurisprudência já vinham desenhando, a concepção pluralista de família. Mesmo assim, ainda se não consegue despir de vã tentativa de busca do ideal. A Lei deverá facilitar a conversão da união estável em casamento. A união, mesmo a não matrimonial, deverá ser entre homem e mulher. Abriu-se por um lado, fechou-se por outro.
Vive-se hoje no Brasil os alvores do Estado Democrático de Direito. Este é o momento da conscientização desse novo paradigma. Só agora assumem a devida importância os princípios e os valores constitucionais, por que se deve pautar todo o sistema jurídico. Constitucionalização ou publicização do Direito Civil entram na temática do dia. O Código Civil não seria mais o centro do ordenamento civil. Seu lugar ocupa a Constituição, seus princípios e valores. Diz-se que os pilares de sustentação do Direito Civil, família, propriedade e autonomia da vontade, deixaram de sê-lo. O único pilar que sustenta toda a estrutura é o ser humano, a dignidade da pessoa, sua promoção espiritual, social e econômica. Este pilar está, por sua vez, enraizado na Constituição. Tudo isso, não há dúvidas, dá o que pensar.

CRISE DA SISTEMATIZAÇÃO

A ideia dominante no positivismo jurídico, que imperou no Brasil até a década de 1970/1980, era a de ser possível uma legislação a tal ponto exaustiva e completa, que enclausurasse o sistema, colocando-o a salvo de qualquer arroubo criativo que não tivesse origem no próprio Poder Legislativo. Não que a ideia de codificação ainda predominasse em todas as esferas. Esta já havia sido abandonada, pelo menos nos círculos pensamentos menos ortodoxos. Tinha-se, nestes círculos, já a esta altura, plena consciência da impossibilidade fática de um Código que abrangesse todo o sistema. Seu lugar deveria ser apenas o centro desse sistema. A descodificação e o surgimento dos microssistemas já era realidade palpável. Aí entra em crise a sistematização.
A descodificação, entendida como processo de abertura e quebra de monopólio dos códigos, já vinha há muito ocorrendo. O Código Civil foi elaborado sob a inspiração do Estado Liberal burguês, do séc. XIX. Não se adequava, evidentemente, às aspirações do emergente Estado Social, instalado no Brasil, já no início do séc. XX. Como conseqüência, teve que se abrir. Em outras palavras, sua harmonia interna foi logo quebrada, seja pela interpretação da doutrina e dos tribunais, seja pela vasta legislação especial, que o acompanhou, desde seus alvores. Por outros termos, mal o sistema civilístico se codificou, teve início o processo de sua descodificação. É lógico, entretanto, que o Código Civil continuou a ocupar a posição central no sistema, só que relido sob a perspectiva do Estado Social.
Se, por um lado, o Código Civil ocupava o centro de sistema, em sua periferia, nos entornos do Código, começaram a se formar pequenos microssistemas: o da família e dos menores; o do inquilinato; o dos contratos imobiliários; o dos condomínios; o dos títulos de crédito; o do consumidor, sem falar em microssistemas que, de certa forma, desde o início, se tornaram independentes, como o do trabalho.
Esses microssistemas, apesar de girarem em torno do Código Civil, têm vida própria. São, em grande parte, interdisciplinares, inspirando-se em princípios, não só de Direito Privado, como também de Direito Público. É o que ocorre, por exemplo, com os microssistemas do consumidor, da família e outros.
Por esta e outras razões, muitos chegam a afirmar que no centro do sistema não gravita o Código Civil, mas a própria Constituição, que de lá irradia seus princípios e valores. A assertiva não deixa de ser correta, se levarmos em conta o sistema jurídico como um todo. No entanto, enfocando-se apenas o sistema juscivilístico, seria um pouco exagerada a afirmação, posto que se entenda que é na Constituição que se deve inspirar o intérprete, em última instância. Na verdade, o Código Civil ocupa o centro do sistema civilístico, mas deve, por sua vez, ser lido à luz da Constituição.
Lorenzetti advoga tese um pouco dissonante, porquanto entende que, nem o Código Civil, nem a Constituição estariam no centro do sistema. A verdade, para ele, é que não há centro no sistema. Neste contexto, fala da descodificação e da recodificação ou ressistematização, como se pode observar, em suas próprias palavras:

As análises dedicadas à descodificação do Direito Privado se concentram na descrição das rachaduras da ordem axiomática fundada no Código, o surgimento de leis especiais, o aparecimento de falhas na estrutura hierárquica das normas, de antinomias e incoerências. Conclui-se que o sistema parece esfacelar-se em microssistemas.
Outros autores referem que há um processo de descodificação e de recodificação civil, dentro dos limites do Código
Para nós, o tema é distinto. O Código, como tal, vai se ampliando, ao dar guarida a novos problemas e microssistemas; suas normas internas vão se distendendo mediante a interpretação, até um ponto culminante que termina por transformá-las. Se examinarmos o caminho percorrido desde a interpretação das cláusulas contratuais, que previu o Código Civil, até o que é hoje a qualificação das cláusulas abusivas, teremos uma ideia de que o resultado final nos coloca em outro estágio, porquanto ocorre uma ampliação nas fronteiras do Código concebido como lei estatal.
[...] Nesta primeira etapa descodificadora, os lugares de instabilidade se multiplicam, conferindo uma aparência de desordem insuperável; a desordem é produto da complexidade e a diferenciação é necessária para crescer.
Os microssistemas se comportam como ‘estruturas dissipativas’ e se convertem em fontes de uma nova ordem. Diz Prigogine que ‘a dissipação se encontra na origem do que podemos acertadamente denominar novos estados da matéria’. Mediante este processo, cria-se um novo sistema.
A teoria das catástrofes considera que se produz um ponto de saturação, que obriga a saltar a um estágio distinto, mediante novas estruturas adaptativas.
[...]
A ideia de superioridade no mundo atual é a de sistema de normas fundamentais, que se encontram nas ‘fontes superiores’: Constituições, tratados, princípios, valores. Não se trata de retornar a um ordenamento fundado em um centro. A evolução de astronomia, desde Ptolomeu a Copérnico, e a situação atual demonstram a superação do paradigma do centro: o etnocentrismo, o antropocentrismo, a ideia ptolomaica revelam um modo de ver baseado em um ponto. O processo codificatório acabou por algo sofrer dessa influência.
Atualmente há uma visão sistemática, na qual todos os pontos são iguais, necessários, interatuantes. As normas fundamentais constituem uma espécie de força de gravidade que os mantém unidos.
Trata-se de uma mudança nos axiomas. Os elementos básicos, estruturantes do sistema, aqueles a partir dos quais se inicia a lógica da inferência no juízo decisório, se encontravam no Código. Agora, percebe-se que estão no Código, na Constituição, nos tratados, no costume, que são as fontes onde encontramos as normas fundamentais”. (LORENZETTI, 1998: 77-79)

Está aí descrita a chamada constitucionalização do Direito Civil. As normas fundamentais, os valores e princípios constitucionais atuam como convergentes. É a partir deles que se deve interpretar toda norma jurídica, inclusive os códigos.
O Código Civil, de 1916, atualmente em vigor, está em pleno processo de releitura, talvez em processo final. O Direito das Obrigações, o Direito de Família e o Direito das Coisas, principalmente a propriedade, já são interpretados de acordo com a Constituição, pelo menos nos meios mais heterodoxos tanto da doutrina quanto da jurisprudência. De grande ajuda para essa virada hermenêutica foram, sem dúvida, o Código do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente e as Leis Concubinárias. Se, por um lado, ainda se vê quem interprete a Constituição de acordo com o Código Civil, por outro lado, a tendência dominante é a de seguir o fluxo contrário. Por outros termos, não se lê o Código Civil sob a ótica do Estado Liberal, mas do Estado Democrático de Direito. Comprovam-no inúmeras obras que vêm a lume todos os dias, fruto de profundos estudos dos meios acadêmicos, bem como decisões de vanguarda, que fazem com que nos orgulhemos de nossos tribunais.
Justamente no instante em que o ordenamento juscivilístico começa a se ressistematizar, pelo empenho da doutrina e da jurisprudência; justamente no instante em que ganha contornos de algo simétrico e inteligível, surge o fantasma de um novo Código Civil, que ameaça ruir todos os esforços de ressistematização envidados até o presente.
É um código que já nasce de costas para o presente, ao menoscabar o paradigma do Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, nascerá já necessitando de releitura urgente. Salta aos olhos que seria muito mais sábio proceder-se a uma reforma paulatina do Código de 1916, à semelhança do que se vem fazendo com o Código de Processo Civil.
É uma pena que, muitas vezes, o ser humano se deixe levar por arroubos cegos de vaidade, que a nada conduzem, senão à confusão e ao fracasso.

CRISE DA INTERPRETAÇÃO

Ocorre, de fato, uma mudança nos paradigmas hermenêuticos. Os métodos de interpretação mudaram. Se a Escola da Exegese e o Positivismo buscavam interpretar o Direito, sob a ótica de um sistema fechado, as teorias da argumentação passaram, já a partir de Viehweg, a adotar a ideia de sistema aberto. Por outros termos, o sistema jurídico, seja codificado ou não, não deve ser visto como algo exaustivo, nem deve ter a pretensão de sê-lo. A interpretação deve tomar como ponto de partida o caso concreto, procurando conjugar os ideais da justiça e da segurança jurídica.
Como diz Lorenzetti,

O casuísta entende que o Direito, ainda que apoiado em normas, só se realiza na decisão dos casos, de modo que a solução repousa na percepção do problema concreto. O casuísta opera com algumas regras e conceitos fundamentais, da mesma forma como os romanos em relação à boa-fé e à eqüidade.
O pensamento sistemático, diferentemente, concebe o Direito como um conjunto estruturado de normas jurídicas, racionalmente elaborado que, além de uma ordem interna, tem uma conexão conceitual interna e encerra em si mesmo todas as soluções possíveis para os problemas que se apresentam na vida social.
Tanto um como outro aglutinam, o que varia é a ordem. O casuísmo ordena as normas ao redor do caso; o sistemático o faz de um modo racional apriorístico. No pensamento casuísta a ideia de ordem chega ao final e é produto de uma acumulação que já não se suporta, no sistemático é o ponto de partida prévio ao desenho da lei.
O pensar sistemático parte de uma totalidade, já o pensamento casuístico procede de modo inverso, pode contar com conhecimentos fragmentários. O primeiro foi criticado por racionalista e desvinculado do caso e do mundo real.
[...]
O Direito não é um sistema meramente dedutivo, é sim um sistema dialético, orientado ao problema, é uma recompilação de pontos de vista sobre o problema em permanente movimento; é aberto e pragmático”. (LORENZETTI, 1998: 80)

Na verdade, o tratamento aporético dado à interpretação não necessita de abandonar a ideia de sistema. O que deve abandonar, definitivamente, é a ideia de sistema fechado. Para o casuísta, o sistema jurídico é aberto, o que equivale a dizer que o intérprete deve partir do sistema para a solução do caso concreto. Ao entrar em contato com as peculiaridades do problema prático, o intérprete buscará adequar a norma, amoldando-a às necessidades do caso. Para tanto, conjugará o texto legal com os princípios e valores vigentes no ordenamento. A solução encontrada passará a integrar o sistema, que, assim, estará retroalimentando-se.
Se observarmos o comportamento dos tribunais, através dos tempos, chegaremos à conclusão de que o sistema sempre foi aberto. O tratamento sempre foi casuístico. A interpretação sempre foi argumentativa. O medo da arbitrariedade de um judiciário sem freios e sem preparo técnico é que levou os juristas, em vão, à tarefa de tentar fechar o sistema. Mesmo na época da Escola da Exegese, os Tribunais franceses não se fecharam às inovações hermenêuticas, baseadas em pura argumentação jurídica.
O temor da arbitrariedade judicial é absolutamente absurdo, em nossos dias, dados os mecanismos de segurança do próprio sistema jurídico. São limites impostos pela dogmática, pela Constituição, pelos valores e princípios vigentes, como, por exemplo, o do duplo grau de jurisdição. Ademais, a argumentação deve ser racional e jurídica. Isto significa que o intérprete partirá do sistema, adequando a norma ao caso concreto, com base nos valores e princípios constitucionalmente aceitos, para que a justiça prevaleça no caso concreto.


CONTEXTUALIZAÇÃO: DA ESCOLA DA EXEGESE À TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO

Para melhor entender a crise por que passa a hermenêutica civilística, é imperioso nos situarmos, construindo, posto que superficialmente, uma panorâmica das principais teorias que procuraram dar estofo à hermenêutica, desde o séc. XIX.
Com o advento da codificação, em fins do séc. XVIII, e, principalmente com os Códigos Franceses do início do séc. XIX, sendo o Civil o mais famoso, tem início, na França, um movimento que se denomina Escola da Exegese.
Nas palavras de Julien Bonnecase, professor na Universidade de Bordeaux,

en efecto, la doctrina da Escuela de la Exégesis se reduce a proclamar la omnipotencia jurídica del legislador, es decir, del Estado, puesto que independientemente de nuestra voluntad, el culto extremo al texto de la ley y a la intención del legislador coloca al Derecho, de una manera absoluta, en poder del Estado”. (BONNECASE, 1924: 158)

Na verdade, a onipotência que se desejava proclamar era a do texto legal, como se fosse claro o suficiente, a ponto de dispensar qualquer atividade interpretativa. Interpretatio cessat in claris. Daí a importância de um texto legal bem escrito, quase uma peça literária.
A Escola da Exegese busca ênfase no racionalismo setecentista, que, aliás, foi responsável pelos códigos franceses. A ideia era a de que o Direito era um sistema de regras estruturadas segundo os corolários da dedução. (CAMARGO, 1999: 61)
Como bem expôs Tércio Sampaio Ferraz Júnior,

o núcleo constituinte dessa teoria já aparece esboçado ao final do século XVIII. O jusnaturalismo já havia cunhado para o direito o conceito de sistema, que se resumia, em poucas palavras, na noção de conjunto de elementos estruturados pelas regras da dedução. No campo jurídico falava-se em sistema da ordem da razão ou sistema das normas conforme a razão, entendendo-se com isto a unidade das normas a partir de princípios dos quais todo o mais era deduzido. Interpretar significava, então, inserir a norma em discussão na totalidade do sistema. O relacionamento, porém, entre sistema e totalidade acabou por colocar a questão geral do sentido da unidade do todo”. (FERRAZ JR., 2001: 261)

Em síntese, a Escola da Exegese entende ser a Lei fonte suficiente de todo o Direito, só podendo o intérprete recorrer a outras fontes por expressa permissão legal. A ilusão era a de ser possível uma leitura tão completa e isenta do texto da Lei, principalmente dos novos Códigos, a ponto de não haver necessidade de interpretação. Os Códigos não deixariam nada ao arbítrio do intérprete. A Lei estaria pronta e acabada. Não haveria mais quaisquer incertezas.
Sobretudo pelos métodos gramatical e sistemático buscar-se-ía sempre a vontade do legislador, por meio dos textos codificados, textos legais autênticos.
É plenamente possível entender-se a Escola da Exegese, se se atentar para o fato de que nasceu numa França pós-revolucionária, subseqüente ao Ancien Régime. Na verdade, o povo já estava farto dos desmandos do Rei, da nobreza e da Magistratura. Não havia mais lugar para os argumentos de autoridade, promanados de juízes nem sempre confiáveis, quer do ponto de vista técnico, quer do ponto de vista moral. Assim, esse apego ao texto legal é absolutamente compreensível. Como se por seu intermédio, ficassem todos protegidos da arbitrariedade.
Historicamente, esse movimento da Escola da Exegese não é totalmente novo. No séc. VI da Era Cristã, Justiniano já proibira qualquer atividade doutrinária que visasse interpretar suas compilações, mais tarde conhecidas por Corpus Iuris Civilis.
Ao mesmo tempo em que na França surgia a Escola da Exegese, na Alemanha ocorria um movimento, por assim dizer, em sentido oposto, fruto da visão romântica do mundo, que se sintetizou na denominada Escola Histórica.
Se o Iluminismo enfatizava a razão como centro de tudo, o historicismo e, especialmente o romantismo, apontava o predomínio da imaginação, do sentimento, da emoção e da sensibilidade. O Direito não poderia jamais ser encarado como algo atemporal e ahistórico. Deve ser reconhecido como algo que se realiza através da história, conforme criação espontânea de cada povo.
Savigny, o grande cultor desse pensamento, entende ser o Direito codificado fruto do despotismo. É imposto pela razão de modo estranho aos costumes. Vem de cima para baixo, não retratando, necessariamente, o espírito do povo, do lugar e da época. O dever do Legislativo é o de oferecer suporte aos costumes, a esse Direito vivo, histórico, temporal, a fim de lhe diminuir as incertezas. Ao invés da codificação, o que se deveria fazer é elaborar cientificamente um Direito de base histórica. Daí a importância da Academia, na visão de Savigny, que, de resto, foi professor na Universidade de Berlin, mestre de Marx e von Jhering.
Essa extrema importância que a Escola Histórica conferiu à elaboração científica do Direito, com base no Espírito do Povo – Volksgeist, acabou por constituir enorme contra-senso in terminis.

O curioso no pensamento de Savigny é que, ao invés de um direito espontâneo, verificado naturalmente nas ações sociais, o que vale, ao final das contas, é o que a doutrina científica elabora. E será assim, justamente, que o pensamento conceitual elaborado pelos professores nas universidades provocará o aparecimento de um novo racionalismo ou intelectualismo jurídico tão anti-histórico como o direito natural mas que se move em plano diferente, qual seja, o da lógica e da dogmática jurídica. O pensamento conceitual lógico-abstrato será aquele capaz de explicitar a totalidade representada pelos institutos jurídicos. Dessa forma, a doutrina termina por ganhar posição superior à da práxis”. (CAMARGO, 1999: 75)

O conjunto dos institutos jurídicos, que habita a consciência do povo, é que constitui o Direito, para a Escola Histórica. Esse Direito só é perceptível pela intuição do jurídico, oriundo de práticas culturais. O intérprete deve pesquisar a vontade histórica do legislador, para, adequando-a ao momento presente, solucionar a controvérsia que lhe é apresentada.
A Escola Histórica deve ser analisada em contexto próprio, de uma Alemanha não unificada, composta de vários reinos vinculados culturalmente. De fato, seria difícil naquele contexto defender-se a ideia de codificação. O máximo a que se chegou foi ao Usus Modernus Pandectarum, adaptação do Digesto à Alemanha oitocentista, obra desse novo racionalismo acadêmico.
Observa-se, todavia, que, mal a Alemanha se unificou, foi elaborado o Bürgerlisches Gesetzbuch (BGB). É lógico que não se quer, com isso, dizer que os intérpretes do BGB seguiram a linha da Escola da Exegese.
Em síntese, o historicismo acabou por desaguar num cientificismo, que encarava o Direito como fenômeno racional e universal e não como algo histórico e nacional. A atividade dos cientistas do Direito consistia em formular conceitos claramente definidos, para garantir a certeza e a segurança, diante de textos legais ambíguos e vagos. É o formalismo alemão do Usus Modernus Pandectarum, que terminou por servir de base ao positivismo jurídico, que imperou por quase todo o séc. XX. 
Desse formalismo, herdamos as teorias gerais, cientificamente elaboradas, com conceitos, definições e classificações. Herdamos textos legais claros e sistematizados, que facilitam a compreensão do leitor. São algumas conquistas que não podemos menoscabar, principalmente numa abordagem didático-pedagógica do Direito.
No mesmo séc. XIX, habitado pelas Escolas Histórica e da Exegese, surge o pensamento sociológico de Auguste Comte. Na esteira dessa sociologia comtiana, mas seguindo tendência própria, nasce o positivismo jurídico.

O positivismo jurídico não seguiu a tendência sociológica apontada por augusto Comte. Firmou-se muito mais sobre as bases do formalismo, uma vez que para uma teoria objetiva do direito importava muito mais o conjunto das normas postas pelo Estado, através de suas autoridades competentes, do que a realidade social propriamente dita. A vontade do Estado soberano prevalece sobre a vontade difusa da nação. O direito positivo, com isso, passa a reconhecer-se no ordenamento jurídico posto e garantido pelo Estado, como o direito respectivo a casa Estado. O direito positivo passa a ser o único direito que interessa ao jurista, porque é o único direito existente, contrapondo-se em definitivo ao direito natural, de difícil verificação”. (CAMARGO, 1999: 85)

Como o pensamento sociológico de Comte deu origem à Escola Positivista? É que o legislador deverá buscar regulamentar os fatos sociais, de maneira a que o Direito posto pelo Estado seja o mais fiel possível a eles. Isso, independentemente de quaisquer valores de ordem moral.
O formalismo torna-se base para os positivistas, que na análise dos fatos sociais, acabam por generalizá-los e torná-los tão abstratos, que os desvinculam dos valores. Os fatos se tornam conceitos de ordem geral e abstrata.
É nessa esteira positivista que se defendem os grandes monumentos legislativos, verdadeiros guarda-chuvas legais, que visam regulamentar, à máxima exaustão possível, todos os fatos sociais. No Brasil, nem no séc. XXI, conseguimos nos livrar dessa ideia, haja vista o novo Código Civil, em tramitação final no Congresso.
Também nessa esteira positivista, é recrudescido o papel da dogmática, que elabora conceitos gerais, que limitam a atuação do Direito a um campo próprio.

É o papel da Teoria Geral do Direito, cuja base formal segue a Jurisprudência dos Conceitos. [...] Essa base conceitual passa a ser fundamental ao princípio da completude da ordem jurídica. Cientificamente, é importante que o direito se baste, uma vez que a auto-integração mediante processo autônomo, lógico e sistemático, baseado em princípios gerais, evitaria a influência de elementos externos descaracterizadores do direito”. (CAMARGO, 1999: 86)

A essa Jurisprudência dos Conceitos, baseada na lógica formal positivista, antepõe-se a Jurisprudência dos Interesses, que busca o estudo e a observação da vida prática.
Já Rudolph von Jhering se contrapunha ao Positivismo Jurídico, por entender que o Direito se liga a um fim específico, que pretende ver realizado na prática. O jurista deve ficar atento às necessidades práticas dos indivíduos, geradoras de determinados fins, e não a conceitos lógicos oriundos de normas e instituições jurídicas. Esse utilitarismo jurídico de Jhering forma as bases para a Jurisprudência dos Interesses de Philipp Heck, da Universidade de Tübingen.
Para Heck, o Direito coordenaria a garantia dos interesses individuais. O juiz, enquanto intérprete da Lei no caso concreto, trataria de compor esses interesse segundo a Lei. Assim, o juiz não teria a mera função de subsumir o fato à Lei, mas deveria adequar sua decisão às necessidades práticas da vida, com base nos interesses em pauta.
A Jurisprudência dos Interesses partia de duas ideias preponderantes. A primeira era a de que o juiz estaria obrigado a obedecer ao Direito positivo. Sua função consistiria em proceder ao ajuste de interesses, do mesmo modo que o legislador. A disputa das partes apresenta um conflito de interesses. O juiz valora esses interesses e busca a valoração do legislador. Esta deverá prevalecer sobre aquela, se houver conflito.
A segunda ideia era a de que, havendo lacunas na Lei, o juiz deveria desenvolver critérios axiológicos, os mesmos de que partiu o legislador, para conjugar os interesses em pauta com base naqueles valores. Assim, o juiz sempre ficará restrito aos valores embutidos na vontade do legislador. 
Se críticas se pode fazer à Jurisprudência dos Interesses é no sentido de que reconhecia apenas uma realidade empírico-sociológica: a verificação dos interesses em pauta. Ademais, buscando os valores na vontade do legislador e não em cada comunidade, limitava o Direito às palavras da Lei, não conseguindo se libertar, afinal, de uma orientação positivista.           
Se, ao contrário, se pode apontar uma contribuição definitiva da Jurisprudência dos Interesses, foi a de inserir na pauta da Hermenêutica, a ideia de valor.
A Jurisprudência dos Interesses se encontra enraizada em movimento contestador da metodologia formalista tradicional. Este movimento se denominou “Movimento para o Direito Livre”. Teve como marco teórico a conferência de Ehrlich, em 1903, sobre “A luta pela Ciência do Direito”, quando propugnou pela busca livre do Direito. O intérprete não deveria se limitar à mens legislatoris encontrada na Lei. O Direito aplicado não poderia se resumir a uma subsunção mecânica da vontade do legislador. Dever-se-ía ir mais fundo.
Cerca de quinze anos antes, também na Alemanha, Oskar von Bülow, já defendia a ideia de que a Lei era apenas uma preparação, uma tentativa de realização de uma ordem jurídica. A decisão judicial, longe de ser somente mera aplicação da norma já pronta, cria o Direito.
Em 1906, Hermann Kantorowicz, publica seu manifesto para um Movimento do Direito Livre. Para ele, nem todo o Direito emana do Estado. Muito mais rico e legítimo é o Direito oriundo dos grupos e movimentos sociais. É Direito espontâneo e natural, que deve ser compendiado pela doutrina e reconhecido pelo Estado, por meio da jurisprudência. O povo desconhece o Direito Estatal, reconhecendo apenas o Direito Livre.
Apesar das vãs tentativas de se despir do formalismo positivista, o séc. XX estava a ele inexoravelmente fadado. Exacerbando o Positivismo, Hans Kelsen cria o Normativismo, que fez adeptos em todo o mundo, principalmente nas ditaduras latino-americanas.
Para Hans Kelsen, todo o Direito se resumiria às normas postas pelo Estado, as quais encontrariam sua base de legitimação, não em valores, mas em outra norma antecedente, superior. Existirá sempre uma norma superior, para conferir validade às normas inferiores, até chegar-se à Norma Fundamental: norma pressuposta, hipótese lógica, que confere validade a toda a ordem jurídica, inclusive à Constituição.
Interpretação, para Kelsen, é operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito de um escalão superior a um escalão inferior. A ordem jurídica compõe-se de vários escalões, que possuem entre si uma relação de determinação ou de vinculação, na medida em que a norma de escalão superior regula a produção da norma de escalão inferior. A atividade de interpretação deverá, portanto, levar em conta os vários âmbitos de aplicação de uma norma. Por exemplo, um ato administrativo deve ser concretizado de acordo com a interpretação da Constituição. Uma sentença judicial, que é norma jurídica individual, deve se concretizar em função da norma que lhe sirva de fundamento. Em outras palavras, a interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica, legitimada por norma de escalão superior.
Kelsen entendia que a interpretação do Direito opera em duas esferas distintas: na esfera pública – interpretação autêntica, quando levada a cabo pelos órgãos estatais. Na esfera privada – interpretação não autêntica, quando levada a efeito pelos indivíduos.
Às vezes, pode ocorrer, segundo ele, que ao positivar a norma, o legislador deixe uma margem de discricionariedade ao aplicador da norma para que atenda às circunstâncias de quando, como e onde a norma deverá ser aplicada. É o que denomina de indeterminação relativa intencional da norma. Às vezes, essa indeterminação relativa não é intencional. Dá-se quando uma norma contém uma pluralidade de significações possíveis, decorrente, em geral da ambigüidade de seus termos. Assim, a Lei seria uma moldura, dentro da qual haveria várias possibilidades de sentido. Uma delas deverá ser escolhida pelo aplicador. Os motivos que o levam à escolha não estariam dentro dos limites da Ciência do Direito, mas da Sociologia, da História, da Psicologia etc.
Apesar de Kelsen, como acabamos de ver, não rechaçar a contribuição da análise sociológica, psicológica, histórica e cultural para o Direito, de uma leitura simplista de seu pensamento, se aproveitaram vários regimes ditatoriais, inclusive o brasileiro de 1964, para legitimar normas absurdas, que privavam os cidadãos de seus direitos fundamentais. Tentaram, e em algum grau conseguiram, transformar os cursos jurídicos em escolinhas de leis. E tentaram, também conseguindo em certo grau, reduzir a Justiça a mera aplicadora cega e literal de normas escritas, utilizando-se de métodos arcaicos de interpretação positivista.
A concepção formalista do Direito pode ser resumida em três pontos fundamentais. Em primeiro lugar, dá-se destaque exagerado à lei escrita, enquanto regra geral, abstrata e universalmente obrigatória, distanciando o Direito do caso concreto. Em segundo lugar, o intérprete tem a tarefa de conhecer e decifrar a lei de modo abstrato, independentemente do caso concreto. Por fim, o processo de interpretação não se confunde com o processo de criação da lei.
Contrapondo-se ao positivismo e ao normativismo, já no início do séc. XX surge a denominada Jurisprudência dos Valores, com adeptos como Radbruch (na primeira metade do século) e Karl Larenz (na segunda metade). A Jurisprudência dos Valores tem o mérito de reconhecer como referência básica do Direito a cultura. Cultura seria o conjunto de crenças e tradições transmitido de geração em geração, criando, por fim, valores aceitos em certa comunidade.
A importância da Jurisprudência dos Valores foi a de ver o Direito como ciência voltada para a conduta ética e a de se preocupar com o justo. Os valores e princípios passam a ser um recurso de interpretação. Tudo isto prepara o terreno para o pós-positivismo e para as teorias da argumentação. 
O chamado pós-positivismo consiste em um movimento de meados do séc. XX, que, contrapondo-se, principalmente, ao normativismo, acredita que o Direito só existe de forma concreta, na medida em que compõe interesses. Seu valor potencial, enquanto conjunto de normas abstratas e genéricas, não tem qualquer interesse prático, digno de ocupar o tempo do estudioso.
Se, por um lado, procura-se abandonar a clausura apriorística do positivismo, que, por meio de processos dedutivos, lógico-formais, previa solução endossistêmica para todos os casos concretos, por outro lado, não se podia relegar a segundo plano a previsibilidade das decisões e a tão almejada segurança jurídica.
O que se passa a discutir, a partir daí, é exatamente um método de interpretação que coadune justiça a segurança. 
O pós-positivismo teve, talvez, em Recaséns Siches um de seus mais altos luminares. Foi ele que, sob o impacto do pós-guerra, com a Nova Filosofia da Interpretação do Direito, começou a enfrentar as insuficiências do paradigma lógico-formal positivista para a solução das questões jurídicas. Para ele, os valores relativos à segurança jurídica não poderiam se impor com exclusividade na busca pelo justo.
Em sua obra, Recaséns Siches estabelece a diferença entre a filosofia jurídica acadêmica e a não-acadêmica. A primeira tem como preocupação elaborar conceitos gerais e abstratos, cabíveis em qualquer ordenamento, com o objetivo de facilitar o tratamento científico de questões jurídicas. A segunda, a não-acadêmica, tem por objeto a interpretação e a aplicação do Direito.

A filosofia não-acadêmica não pode sempre se utilizar do método formal, lógico-dedutivo, para a solução de problemas práticos. O juiz, muitas vezes, depara com problemas que dizem respeito à escolha da norma certa para o caso certo, ou à determinação do conteúdo concreto de uma norma genérica, de forma a adequá-la ao caso. As regras do silogismo quase nunca resolvem esses problemas concretos: premissa maior (Lei) – premissa menor (caso) – conclusão (sentença).
O intérprete enfrenta três problemas centrais, segundo Recaséns Siches. Em primeiro lugar, deve eleger a norma adequada para o caso. Em segundo lugar, deverá converter os termos gerais da norma em uma norma singular e concreta, a fim de que nesta norma individualizada para o caso concreto se cumpra o propósito que inspirou a norma genérica. Finalmente, em terceiro lugar, o intérprete deverá escolher o método mais adequado para tratar o caso concreto. Como se pode ver, a preocupação com a segurança jurídica ainda é muito forte, apesar de se admitir que a justiça é o objetivo do Direito.
Na busca pelo método, Recaséns Siches parte da premissa de que o método lógico-dedutivo não é suficiente, para que o Direito possa solucionar os problemas da justiça. A resposta nessa busca deve ser dada pela filosofia.
Sendo a Lei uma prescrição permanente, para ser aplicada no futuro, deve o intérprete se colocar no lugar do legislador, deixando fluir seu espírito do passado ao presente. É como se o legislador decidisse o caso, incorporado no juiz. Nesse ritmo, Recaséns Siches revive o método da Escola Histórica, o qual denomina de método subjetivo-objetivo. É a busca pela vontade do legislador.
O Direito Positivo, em sua visão, não deve ser encarado como um conjunto de palavras ou um sistema de conceitos lógicos. O Direito Positivo é a justa interpretação das normas vigentes. Em outras palavras, Direito é interpretação. Assim, o juiz não deve se sentir culpado por ter que adaptar a Lei para fazer a justiça. A sentença judicial traz sempre algo de novo. Para individualizar a norma, o que era geral e abstrato se torna particular e concreto. Haverá sempre uma adaptação criativa na sentença.
Nos casos mais complicados, principalmente quando houver lacunas ou antinomias, o juiz deverá investigar quais são os critérios hierárquicos de valores sobre os quais se funda o ordenamento. Nessa escala de valores, o juiz deverá escolher aqueles que melhor resolvem o problema. Para escolher estes valores, o juiz deverá se inspirar na vontade do legislador, procurando aqueles que produziriam os mesmos efeitos na solução da controvérsia, que os valores eleitos pelo legislador ao propor a norma de modo genérico e abstrato. Em outras palavras, é na vontade do legislador que se poderá encontrar a escala de valores adotada pelo ordenamento.
Sintetizando, o juiz, após a instrução processual, intui, com base na lógica do razoável, uma solução. Essa intuição não é fruto de um raciocínio. Forma-se de modo direto, sobre o que é justo para o caso. É uma intuição baseada naquilo que é razoável, enraíza-se no logos do humano. A partir dessa intuição, o juiz formula sua fundamentação. Esta se opera, com toda facilidade, segundo as regras do silogismo. 
Se podemos apontar duas grandes contribuições de Recaséns Siches, seriam elas a importância dada ao papel da Filosofia do Direito e a ideia de se buscar, a partir do problema, ou seja, do caso concreto, a axiologia do Direito.
A partir da década de 1950, uma série de obras é publicada, opondo-se à lógica formal como instrumento de análise do raciocínio jurídico. Ao conjunto dessas obras se dá o nome genérico de Teoria da Argumentação Jurídica. Na verdade, como se verá, não existe uma, mas várias teorias da argumentação.
Dentro dessa perspectiva, que integra pós-positivismo e teorias da argumentação, foi Theodor Viehweg um dos maiores luminares. Resgatando, a retórica dos gregos e romanos, constroi sua teoria, que se usa denominar tópica.
Os pretores e jurisconsultos romanos, dada a pobreza do texto legal, desenvolveram, principalmente na época clássica (126 a.C. a 285 d.C.), uma forma de pensar tópico-problemática, solucionando os conflitos concretos de forma casuística, com base na opinio communis e na argumentação retórica. A justiça se construía com base nas decisões concretas, das quais se extraíam princípios que serviam de fundamento de validade a cada nova decisão. A jurisprudência romana, por se basear na prática discursiva, cujo centro era o problema do caso concreto, não se enclausurava no pensamento lógico-dedutivo de ordem formal.
Partindo dessa análise histórica, Viehweg apresenta sua tópica, como um modo de pensar por problemas. O intérprete mantém princípios e conceitos apriorísticos, de modo problemático. Em outras palavras, os princípios, conceitos, enfim, as categorias teóricas do Direito são mantidas abertas, só assumindo significado diante do problema concreto. É o teórico, o abstrato que tem que se adaptar ao concreto e não o contrário.
A tópica em si mesma consiste numa arte, num pensar aporético, por problemas. Diante de um problema concreto, o intérprete se vê perante várias soluções. Apenas uma, porém, deve ser adotada. É por meio da tópica que chegará a ela. Assim, partindo do problema, o intérprete analisa as várias possibilidades dentro de um ou mais sistemas. O sistema seria uma pauta de regulação previamente estabelecida, um catálogo de topoi, como diria Viehweg. A partir daí a solução seria encontrada. Por outros termos, parte-se do problema para o sistema e não do sistema para o problema. Vale dizer que cada caso concreto apresenta um problema novo, que deve ser pensado individualmente, não se vinculando a um sistema dado, mesmo que em circunstâncias análogas um caso com um problema semelhante já tenha sido decidido num certo sentido. Este simples fato não vincula o intérprete. Se a justiça se alcança por meio dessa liberdade, a segurança, por sua vez, encontra-se na própria pauta de regulação, nos topoi, no sistema, enfim.
Outro grande cultor da Teoria da Argumentação foi Perelman. Em 1958, publica, na Bélgica, seu livro, “A nova retórica: tratado da argumentação”. Nesta obra expõe suas ideias, até hoje debatidas.
O ponto crucial é se saber como o intérprete deverá justificar a solução dada para certo problema dentro do sistema, a fim de que se promova a justiça, sem abrir mão da segurança. Se para Recaséns Siches era a lógica do razoável, a resposta encontrada por Perelman foi a argumentação.
O ponto de partida da Nova Retórica é a diferença aristotélica entre raciocínios analíticos ou lógico-formais e raciocínios dialéticos ou retóricos. É evidente que sua teoria da argumentação toma por base o raciocínio retórico ou dialético. A ideia é a de que, para se construir uma teoria da argumentação, a pedra de toque deverá ser o tipo de raciocínio utilizado por políticos, juízes ou advogados.
A lógica formal, baseada no raciocínio analítico se move num sentido necessário: se a premissa maior é válida e também válida a premissa menor, a conclusão é inexorável. Se todo homem é mortal e se Pedro é homem, conseqüentemente, Pedro é mortal. Ao contrário, a argumentação, baseada no raciocínio dialético, não se move num sentido necessário, mas apenas plausível. Os atos inexistentes não existem e, por isso, não podem produzir efeitos, pois o que não existe não pode produzir efeitos. Assim, sendo considerado inexistente o casamento contraído sem as formalidades legais, dele não se poderia extrair qualquer efeito. Isto, segundo a lógica formal. Ocorre que, na prática, não é o que acontece. Mesmo o casamento inexistente poderá produzir efeitos em relação ao cônjuge de boa fé. A esta conclusão se chega pelo raciocínio retórico, que abre outras possibilidades de solução para o caso concreto, tendo em vista outros princípios que integram o ordenamento jurídico, no caso o princípio da boa fé, o princípio da aparência.
Na teoria de Perelman, é fundamental a existência de um auditório (interlocutor ou interlocutores, determinados ou não) que se deseja persuadir. Daí denominar sua teoria de retórica e não de dialética.
Nos dizeres de Manuel Atienza,

Perelman considera a argumentação como um processo em que todos os seus elementos se interagem constantemente, e nisso ela se distingue também da concepção dedutiva e unitária do raciocínio de Descartes e da tradição racionalista. Descartes via no raciocínio um ‘encadeamento’ de ideias, de tal maneira que a cadeia das proposições não pode ser mais sólida que o mais frágil dos aneis; basta que se rompa um dos aneis para que a certeza da conclusão se desvaneça. Ao contrário, Perelman considera que a estrutura do discurso argumentativo se assemelha à de um tecido: a solidez deste é muito superior à de cada fio que constitui a trama. Uma conseqüência disso é a impossibilidade de separar radicalmente cada um dos elementos que compõe a argumentação”. (ATIENZA, 2000: 85)
           
Na verdade, a argumentação seria um processo para a obtenção de certo resultado, qual seja, conseguir a adesão do auditório, sem o uso da coação física ou moral. A argumentação, para persuadir o auditório, deve ser imparcial, ou seja, sem tomar partido, o autor do discurso deverá se posicionar ao lado do auditório que deseja persuadir. Basta imaginarmos a atuação do advogado para convencer o juiz e deste para convencer as partes.
Ser imparcial significa ser justo, pois implica que, em circunstâncias análogas se agiria da mesma forma. Implica também que o critério da argumentação convenceria ao maior número possível de interlocutores, ou seja, ao auditório universal.
A argumentação deve partir de certas premissas, tais como fatos, presunções e valores, para, por meio de técnicas de retórica, chegar a uma conclusão. As técnicas argumentativas são as mais variadas. Por exemplo, pode-se citar os argumentos lógicos, os quase-lógicos, a contradição, a argumentação por etapas, e muitas outras apontadas por Perelman.
Apesar disso tudo, Perelman observa que, ao contrário do que ocorre nas ciências dedutivas, no Direito é difícil se chegar a uma solução que agrade a todos. A argumentação existe no campo da controvérsia, conduzindo a uma das soluções possíveis para determinado caso. Daí a necessidade de a sentença judicial ser imposta coercitivamente.
Também em 1958, publica-se na Inglaterra a obra de outro importante pensador, que em muito contribuiu para a teoria da argumentação: “The uses of argument”, de Toulmin.
Toulmin, ao contrário de Viehweg e Perelman, não procura ressuscitar a tópica ou a retórica. Inicia seu trabalho, a partir de uma análise da lógica dedutiva, concluindo por sua incapacidade de dar conta dos argumentos de qualquer âmbito, inclusive o das ciências, à exceção da matemática. Começa, então, por construir uma nova concepção da lógica.
Para Toulmin, argumentação é a atividade de propor pretensões, pô-las em questão, respaldá-las, produzindo razões, criticando as razões, refutando as críticas etc. Argumentação, argumento são termos que muito têm a ver com debate, discussão. Aliás, esta é uma das traduções da palavra inglesa argument, que além de argumento propriamente dito, significa debate.
Num argumento, há quatro elementos: a pretensão, as razões, a garantia e o respaldo. Pretensão é o ponto de partida: “X tem direito a ser indenizado”. Se o proponente expõe sua pretensão e o oponente concorda, cessa a argumentação. Caso discorde, o proponente terá que explicar as razões de sua pretensão. As razões são os fatos que integram o caso concreto: “X tem direito a ser indenizado porque Y amassou-lhe o veículo, causando-lhe um dano”. O oponente poderá refutar os fatos ou aceitá-los. Se os refutar, o processo argumentativo volta ao início, se os aceitar, poderá exigir que o proponente explicite porque as razões conduzem à pretensão: “por que o fato de Y ter amassado o carro de X, faz com que X tenha direito a ser indenizado?” Aí surge a garantia do argumento, que no caso do Direito será a norma: “quem causa um dano, deve indenizar a vítima”. Mas essa garantia pode não ser suficiente, pode necessitar de um respaldo que lhe dê validade: “o art. 159 do Código Civil”. O respaldo, como se vê, pode ser expresso por meio de um enunciado categórico, enquanto a garantia é expressa por meio de um enunciado hipotético.
Na argumentação jurídica, as razões, nas questões de fato, são os meios de prova; nas questões de Direito, as razões são fatos já provados, normas, declarações de autoridade, decisões dos tribunais etc. As garantias, nas questões de fato, são os depoimentos das testemunhas, dos peritos, os documentos etc. Nas questões de Direito, as garantias serão as normas e os princípios. O respaldo, nas questões de fato, consistirá na referência ao campo geral de experiência em que se assenta a garantia; nas questões de Direito, na indicação de que a garantia enuncia uma norma ou um princípio vigente.
Um argumento pode vir isolado ou fazer parte de uma cadeia de argumentos.
É evidente que, no Direito, diferentemente da matemática, a conclusão nem sempre ocorre de maneira necessária. Nem sempre quem causa um dano terá que indenizá-lo. Podem ocorrer circunstâncias excepcionais que solapam a força dos argumentos, como, por exemplo, a força maior, na hipótese em análise. Dessa forma, os argumentos levam tão-somente a uma possibilidade. Por outro lado, há argumentos que são falaciosos, incorretos e que, portanto, não conduzem a qualquer conclusão válida.
As teorias da argumentação concebidas por Viehweg, Perelman e Toulmin, apesar das diferenças, têm algo em comum, todas rejeitam o modelo da lógica dedutiva. Todos os três demonstram que este modelo tem sérios limites; tentar reconstruir a argumentação jurídica a partir dele seria um grande equívoco.
Com base no caminho aberto por Viehweg, Perelman e Toulmin, surgem, no final da década de 1970 e 1980, outras versões da teoria da argumentação. Dentre as mais importantes, destacam-se a de Neil McCormick e a de Robert Alexy. Suas concepções, embora semelhantes, diferem em alguns pontos.
Em 1978, Neil McCormick publica obra em que expõe sua tese: “Legal reasoning and legal theory”. Procura este autor um meio caminho entre o racionalismo puro e o irracionalismo. Sua teoria pretende ser tanto descritiva, quanto normativa, dando conta dos aspectos formais, dedutivos da argumentação jurídica e dos aspectos não-dedutivos, materiais.
Para McCormick, pelo menos em alguns casos, as justificações dos juízes são estritamente dedutivas. Dá como exemplo o caso em que o vendedor é condenado a pagar os danos causados por defeito do produto. No contrato de compra e venda, há uma cláusula implícita no sentido de que a mercadoria deve ser comercializável, ou seja, de boa qualidade. Se não o for, caberão perdas e danos. O raciocínio lógico-dedutivo aqui é que o vendedor descumpriu a cláusula implícita e, portanto, deverá ser obrigado a indenizar os danos.
O que se poderia indagar, no caso dado, é porque o fabricante não foi condenado. Afinal, se houve culpa foi de sua parte. A decisão não teria, pois, sido lógica.
Para responder a esta indagação, McCormick afirma que a expressão “lógica” deve ser entendida em dois sentidos. Num primeiro sentido, o predicado “lógico” é usado com relação às premissas do raciocínio: se não forem contraditórias, o raciocínio sra lógico. Num segundo sentido, decisão lógica equivale a decisão justa. Em outras palavras, a decisão justa tem que estar de acordo com as diretrizes gerais do sistema ou com os princípios do Direito. No caso citado acima, poder-se-ía dizer que a decisão foi lógica, mas não foi justa. Assim, uma das premissas seria só aparentemente correta.
Ocorre que, no caso em tela, temos duas situações. Na primeira, a premissa maior é: quem descumpre o contrato deve indenizar a outra parte. A premissa menor é: o vendedor descumpriu uma cláusula contratual. A conclusão será, logicamente, que o vendedor deverá indenizar o comprador.
Numa segunda situação, teríamos o seguinte. Premissa maior: quem causa dano é obrigado a indenizar. Premissa menor: o fabricante lançou no mercado produto defeituoso, que causou dano a um consumidor, por ter adquirido o produto de um vendedor. Conclusão: o fabricante deverá indenizar o dano. Embora a decisão do juiz pudesse ser nesse segundo sentido, constata-se na prática que é muito difícil, senão impossível, provar a culpa do fabricante. É, portanto, muito mais fácil adotar a primeira solução. O juiz deve levar em conta regras de Direito Processual que aquilatam a importância da prova. Isso deixa clara a importância da lógica dedutiva para a justificação da decisão. Por outros termos, o juiz, no caso dado, levando em conta as regras de instrução probatória, optou pela primeira solução, dentro de um padrão lógico-dedutivo. Poderia, talvez, adotar a segunda solução, se entendesse que o fabricante é que deveria provar sua inocência, dado um argumento conseqüencialista do seguinte tipo: o fabricante deve ser punido, até para desestimulá-lo e a outros fabricantes de oferecer ao consumo produtos defeituosos. Em outras palavras, um mesmo caso pode gerar duas soluções distintas. O que importa é que estejam justificadas.
A justificação dedutiva tem seus pressupostos e limites. Um primeiro pressuposto é que o juiz deve aplicar normas de Direito válido. Um segundo pressuposto é que o juiz deve poder identificar essas normas válidas, o que significa aceitar a existência de critérios de reconhecimento, compartilhados por todos os juízes.
Além dos pressupostos, a justificação dedutiva tem limites, isto é, a justificação das premissas normativas ou fáticas pode suscitar problemas. Neste sentido, há casos fáceis e casos difíceis. Nestes últimos podem ocorrer problemas de ordem normativa, como problemas de interpretação, quando a norma aplicável admite mais de uma leitura; ou problemas de pertinência, quando não se encontra claramente uma norma aplicável. Podem também ocorrer problemas de ordem fática, como problemas de qualificação, quando há dúvida sobre se certos fatos comprovados integram ou não o caso; ou problemas de prova, ou seja, se os fatos comprovados formam uma prova coerente, que conduza a uma conclusão segura.
O cerne da teoria de McCormick, pode-se dizer, é o seguinte: as decisões boas devem ser lógicas, ou seja, devem ter uma justificação dedutiva, e devem ser justas, ou seja, têm que estar de acordo com as diretrizes gerais do sistema ou com os princípios do Direito. Nos casos simples, a justificação dedutiva é suficiente para demonstrar que a decisão está de acordo com as diretrizes gerais do sistema ou com os princípios do Direito. Mas o que ocorre com a argumentação jurídica se a justificação dedutiva não bastar para a sentença justa?
Nesses casos difíceis (hard cases), justificar uma decisão significa dizer que ela tem que ser universal e tem que fazer sentido em relação ao sistema e em relação ao mundo.
Segundo o requisito da universalidade, o raciocínio argumentativo que justifica decisão deve contar, do ponto de vista normativo, com uma premissa (a premissa maior do silogismo) que seja a expressão de um princípio de Direito. É a exigência de justiça formal.
Cumprir o requisito da universalidade é elaborar uma justificação de primeiro nível. Mas a decisão deve fazer sentido em relação ao sistema, isto é, deve cumprir os requisitos de consistência e coerência. Deve ainda fazer sentido em relação ao mundo, ou seja, em relação às conseqüências que irá produzir no mundo.
Uma decisão será consistente, quando se basear em premissas normativas que não entrem em choque com normas válidas. Os juízes não podem, assim, infringir o Direito, e devem ajustar as provas à realidade.
Quanto à coerência, a decisão deve ser coerente tanto do ponto de vista normativo quanto do ponto de vista narrativo. Haverá coerência normativa, quando a norma aplicável puder ser submetida a princípios ou valores aceitáveis em certo tempo e lugar. Haverá coerência narrativa, quando da análise dos fatos se puder chegar a uma conclusão lógica: X morreu esfaqueado. Z foi encontrado, ao tentar esconder uma faca suja de sangue. A faca corresponde à descrição da arma que matou X. O sangue nela encontrado é o de X. Conclusão: Z matou X. No caso, em princípio, há coerência narrativa.
Falta ainda a questão de dever a decisão fazer sentido em relação ao mundo. Em outras palavras, a solução dada pelo intérprete deve fazer sentido em relação às conseqüências que irá produzir no mundo. A argumentação jurídica, dentro dos limites da universalidade, consistência e coerência, é, essencialmente, uma argumentação conseqüencialista.
Conseqüências são o estado de coisas, posterior ao resultado. Assim, uma decisão é um resultado que irá produzir conseqüências. Por exemplo, decidir que uma mulher pode praticar o aborto se seu filho não for “normal”, pode gerar conseqüências que conduzam a uma visão facista de depuração da raça. As conseqüências são avaliadas de acordo com os valores vigentes em certo tempo e lugar.
No mesmo ano de 1978, em que McCormick publica seu livro, “Legal reasoning and legal theory”, na Alemanha, Robert Alexy traz a lume suas ideias, na obra “Theorie der juristischen Argumentation”.
Substancialmente, as duas teorias coincidem. A diferença substancial é que McCormick parte das justificações das decisões, tal como ocorrem na prática jurisprudencial, para construir uma teoria da argumentação jurídica, que entende ser parte de uma teoria geral da argumentação prática. Alexy, a seu turno, percorre como que o caminho inverso: parte de uma teoria da argumentação prática geral, para chegar na teoria da argumentação jurídica. Esta seria um caso especial do discurso moral, ou seja, da teoria geral da argumentação prática.
A base da teoria de Alexy é a teoria do discurso de Habermas. Para este, as questões práticas podem ser decididas racionalmente. E este é o ponto de partida, explicar como se opera o discurso, a argumentação racional, que conduz à decisão.
Segundo Alexy, sendo o discurso jurídico um caso especial do discurso geral prático, caracteriza-se por tratar de questões práticas; nele erige-se uma pretensão de correção, que se opera dentro de certas limitações. No discurso, ou seja, na argumentação jurídica, não se sustenta que determinada pretensão seja a mais racional, mas que ela pode ser fundamentada de forma racional dentro da moldura do sistema jurídico vigente.
Por um lado, o discurso jurídico se processa pela regras e formas do discurso geral prático. No entanto, por outro lado, sujeita-se a regras e formas que lhe são específicas, como a sujeição à Lei, aos precedentes judiciais e à dogmática.
As decisões devem possuir justificação interna, isto é, para a fundamentação de uma decisão jurídica, deve-se apresentar, pelo menos, uma norma universal. A decisão deve seguir-se de uma norma universal e de outras proposições. Também devem possuir as decisões justificação externa, referente às premissas. As premissas podem ser regras de Direito Positivo; podem ser enunciados empíricos, respeitantes, por exemplo, às questões de prova; ou podem ser outros enunciados (que seriam basicamente reformulação de normas), para cuja fundamentação é preciso recorrer à argumentação jurídica, concretamente às formas e regras de justificação externa. (ATIENZA, 2000: 256)
Para Alexy, existem seis grupos de regras e formas de justificação externa, segundo digam respeito à interpretação, à argumentação dogmática, à argumentação prática geral, ao uso de precedentes, à argumentação empírica ou às formas especiais de argumentação jurídica.
As regras e formas relativas à interpretação denominam-se cânones da interpretação. São argumentos semânticos, genéticos, teleológicos, históricos, comparativos e sistemáticos. O problema é que os resultados a que se chega são diferentes, dependendo do cânone que se emprega. Apesar de não ser possível se  estabelecer uma hierarquia entre eles, é possível instituir certas regras que dêem prevalência aos argumentos semânticos e genéticos.
Nos dizeres de Alexy, os argumentos que exprimem uma ligação com o teor literal da Lei ou com a vontade do legislador histórico prevalecem sobre os demais, a não ser que se possa apresentar outros motivos racionais que concedam prioridade a outros argumentos.
A argumentação jurídica tem, porém, seus limites. Uma solução a que se chegou dentro das regras do discurso jurídico é uma solução racional, mas estas mesmas regras não garantem que haja apenas uma solução possível para cada caso. Vejamos um exemplo.
Dada a norma, segundo a qual o possuidor esbulhado tem direito a ser reintegrado na posse, e dado o caso prático de alguns sem-terra terem invadido terras públicas, estaríamos diante de uma questão em que se poderia utilizar um argumento semântico ou um argumento genético. Segundo o argumento semântico, o juiz deveria reintegrar o Poder Público na posse do imóvel. Segundo o argumento genético, a vontade do legislador histórico deve ser buscada, e, seguramente, não tinha ele em mente este tipo de situação, em que miseráveis invadem terras públicas. Tinha em mente o homem médio. Mesmo porque, o movimento dos sem-terra é muito recente, bem posterior ao CPC.
Vemos aqui duas soluções lógicas, ambas bem justificadas, tanto do ponto de vista interno quanto do externo. Como escolher uma delas? O juiz escolherá aquela que apresentar argumentos mais ponderáveis. Aquela que resistir melhor às críticas da parte contrária. A que lhe parecer mais racional.
Há outras versões da teoria da argumentação, como a de Manuel Atienza, a de Aulis Aarnio e a de Alexander Peczenick. Não é, todavia, nosso objetivo descrever todas elas, mas apenas as que tiveram maior repercussão.
Na verdade, e concluindo, entendo que a interpretação sempre teve base argumentativa. Às vezes mais, às vezes menos, os tribunais nunca aplicaram a letra cega da Lei, de forma insensível aos clamores da justiça. Mesmo na época em que imperava, na França, o espírito da Escola da Exegese, tanto a doutrina quanto a jurisprudência procuravam adequar a norma fria às exigências da eqüidade. As teorias da hermenêutica, que buscaram fechar o sistema, só o fizeram, porque a realidade era outra, era argumentativa, aberta. Ademais, temiam a arbitrariedade de um judiciário pouco técnico e isento. Lembremo-nos de que os juízes eram nomeados pelo rei e escolhidos dentre pessoas de sua confiança, não sendo necessariamente bachareis em Direito.
É evidente que o intérprete, uma vez consciente de que o sistema jurídico é aberto, de que se retroalimenta da própria interpretação, de que o sistema moderno oferece garantias de decisões técnicas e isentas e de que a luta por um sistema fechado é vã; uma vez ciente disso tudo, é óbvio que o hermeneuta tem muito melhores condições de desenvolver um trabalho sério e de aprimorar as técnicas de interpretação, para construir um ordenamento jurídico que promova a justiça no caso concreto, sem abrir mão dos ideais de segurança jurídica.

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