ENSAIO CRÍTICO ACERCA DA TEORIA DAS
NULIDADES
César Fiuza
Advogado. Consultor jurídico.
Doutor em Direito pela UFMG.
Professor
de Direito Civil nos Cursos de Graduação e de Pós-graduação da PUCMG, da UFMG e
da FUMEC. Professor colaborador na FADIPA.
I. Introdução
A
teoria das nulidades no Direito Brasileiro centra-se nos arts. 166 a 184 do
Código Civil. Toda ela se arquiteta a partir desses dispositivos. Estes, por
sua vez, vão buscar sua origem remota no sistema de nulidades do Direito
Romano, engendrado não pelos romanos, mas pelos romanistas contemporâneos, com
base nos antigos textos, principalmente do Corpus
Iuris Civilis, do séc. VI da era cristã.
Nossa análise
tem que partir, portanto, da doutrina do Direito Brasileiro moderno, para, por
meio de indagações críticas, chegar ao Direito Romano, cuja doutrina há de ser,
também ela, questionada.
Para
nossa doutrina tradicional, brasileira e alienígena, em que consistiria o
sistema de nulidades? Como poderia ser ele descrito? Como é aplicado?
Estudando
os autores de maior escol, acharemos muitos pontos convergentes, todos na
tentativa de apresentar regras lógicas e funcionais para explicar a sistemática
das nulidades. Mas seria sua explicação convincente? Seria ela consentânea com
a realidade? Essa é basicamente nossa preocupação: desvendar o real sistema de
nulidades do Código Civil e seu verdadeiro funcionamento na prática.
Na opinião de
Caio Mário, os atos inválidos ou ineficazes lato
sensu se dividem em atos nulos, anuláveis, inexistentes e ineficazes stricto sensu. (PEREIRA, p. 402 et seq.)
Para Serpa
Lopes a ineficácia em sentido amplo abrange quatro categorias: nulidade ou
invalidade, anulabilidade, inexistência e ineficácia stricto sensu. (SERPA LOPES, p. 443 et seq.)
Já nos dizeres
de Orlando Gomes, a ineficácia lato sensu
abrange a nulidade, a anulabilidade, a ineficácia stricto sensu e a inexistência. Os atos nulos e anuláveis são atos
defeituosos, apenados com a sanção de invalidade. (GOMES, p. 468 et seq.)
Quanto aos
efeitos, a teoria tradicional, bem representada acima, divide-os, de um modo
geral, nos mesmos, para os atos nulos, anuláveis, ineficazes e inexistentes.
Estudemos,
então, a teoria tradicional das nulidades, examinando a nulidade, a
anulabilidade, a ineficácia e a inexistência, a partir do Direito Romano.
II. Teoria das nulidades no Direito
Romano
Como
já se disse, os romanos mesmos pouco teorizaram a respeito do tema. O estudo e
a sistematização do sistema de nulidades no Direito Romano é obra posterior,
que tem início no Direito Canônico medieval, desenvolvendo-se na modernidade,
principalmente, nos sécs. XVIII e XIX, na Alemanha, França e Itália.
Na
opinião generalizada dos tratadistas, intérpretes do Direito Romano, os atos do
ius civile eram válidos ou nulos. O
Direito Pretoriano introduziu a anulabilidade, alargada e generalizada pelo
Direito Justinianeu. (MARKY, p. 51)
O
chamado ius civile era o direito da
cidade, o ius civitatis, o Direito
Romano propriamente dito, cuja expressão máxima foi a Lei da XII Tábuas, do séc.
V a.C. Era direito rígido e formalista, inadequado à evolução dos tempos, já
mesmo naqueles idos anteriores à Era Cristã. Daí a importância da atuação dos
magistrados que, por meio de seus editos, foram adaptando o ius civile a novas situações, emergentes
de novas realidades. Esse Direito Romano, inovado pelos magistrados,
principalmente pelos pretores (ius
honorarium, Direito Pretoriano), introduziu a anulabilidade, mais à frente
(séc. VI d.C.) ampliada pelo Direito Justinianeu.
Nos
dizeres de Moncada, a validade ou não validade de um negócio jurídico não era,
pois, mais do que a aptidão desse negócio a produzir ou não todos os seus
efeitos normais. (MONCADA, p. 316 et seq.)
Havia,
pois, duas espécies de nulidade: a relativa e a absoluta.
Tratando-se
de nulidade absoluta, o ato não produzia qualquer dos efeitos que se tinha em
vista. Neste caso a espécie de nulidade que o feria equivalia a considerá-lo
verdadeiramente inexistente.
Esses negócios
não dependiam de anulação judicial. Não produziam efeitos por não existirem.
Eram nulos ab origene, pleno iure. Exemplos seriam a compra e
venda sem preço; o testamento sem as formalidades exigidas; etc.
Era nulo o
negócio quando lhe faltasse elemento essencial.
Não é sempre
fácil determinar, em face do Direito Romano, se um ato é absolutamente nulo,
relativamente nulo ou anulável. O critério deve ser o do interesse em respeito
do qual a ineficácia foi cominada. Se for de ordem pública, a nulidade será
absoluta; se de ordem puramente privada, a nulidade será relativa ou o negócio
será anulável. (MONCADA, p. 316 et seq.)
Sendo a
nulidade relativa, o negócio era considerado nulo (inexistente) relativamente a
certas pessoas e válido relativamente a outras. O ato podia convalidar-se. Por
exemplo, cite-se o menor que aluga serviços. O negócio era nulo para o tomador
e válido em relação ao menor. Se o contrato fosse adimplido, as partes não
poderiam repetir o que se pagara. Daí dizer-se que se convalidava.
Outro exemplo
seria o do escravo manumitido em fraude contra credores (Lex Aelia Sentia). O ato era considerado nulo apenas em relação aos
credores.
Cuidando-se
de anulabilidade, o ato era válido, sendo, potencialmente, anulável. Os casos
de anulabilidade eram, em princípio, a incapacidade relativa e os vícios do consentimento
(erro, dolo, coação) (MONCADA, p. 324). Na verdade, é difícil estabelecer
critérios seguros para identificar as causas de anulabilidade. Há quem diga que
as nulidades eram de ius civile e as
anulabilidades de ius honorarium
(MONCADA, p. 324). Mas esse critério é falho, visto que há exemplos de
nulidades de ius honorarium e
anulabilidades de ius civile.
Van Wetter se
refere a atos nulos ou inexistentes e a atos anuláveis, além dos válidos. (VAN WETTER, p. 178)
Eram nulos os
atos, se uma das partes era incapaz por defeito de vontade, se uma das
condições objetivas faltasse, se houvesse erro essencial, coação física ou
simulação, e se a forma fosse inadequada. Em outras palavras, o ato era nulo se
lhe faltasse vontade, objeto ou forma.
Fora desses casos,
os vícios geravam anulabilidade.
Aponta Van
Wetter princípios comuns aos atos nulos e anuláveis:
1o) Não se
convalidavam se a causa de sua invalidade deixasse de existir. Só isso não
bastava. Se o ato era nulo, é porque não existia e continuava não existindo. Se
era anulável, cessado o defeito, as partes deveriam ou refazê-lo ou
confirmá-lo.
2o) O ato não se
convertia em outro, a não ser que houvesse disposição em contrário. Assim, uma
compra e venda sem o preço não se converteria em doação.
3o) Se o defeito
atingisse uma parte apenas, a outra continuava válida (utile per inutile non vitiatur).
Indica
também regras próprias dos atos inexistentes (nulos):
1a) O ato inexistente
não produzia efeitos.
2a) O ato inexistente
não admitia convalidação, a não ser que se o praticasse novamente, quando seus
efeitos se produziriam ex nunc.
E
regras próprias dos atos anuláveis:
1a) Produziam efeitos
até sua anulação.
2a) Admitiam
confirmação, quando o defeito simplesmente desaparecia.
José Carlos Moreira Alves (p. 167 et
seq.) afirma que, no direito clássico, havia a nulidade reconhecida pelo ius civile e que operava ipso iure e a impugnabilidade, admitida
pelo ius honorarium, por meio,
principalmente, da denegatio actionis,
da exceptio e da restitutio in integrum. Assim, o pretor fornecia meios para que os
negócios considerados válidos pelo ius
civile, não produzissem efeitos. Tal era o caso da fraude contra credores,
por exemplo. (p. 169)
O Direito
Justinianeu unificou o sistema clássico e pretoriano, podendo-se, a partir daí,
falar em atos anuláveis. (MOREIRA ALVES, p. 169)
No ensinamento de Mario Talamanca (p. 223 et seq.), para o ius civile
só havia duas alternativas: ou o negócio era válido ou ineficaz (nulo). Para
eles, diferentemente dos sistemas atuais, o negócio nulo não existia.
(TALAMANCA, p. 225)
Havia
casos, entretanto, em que, para o ius
civile,o negócio era válido, mas, para o ius honorarium, era inválido. Nesses casos, cabia aos interessados
recorrer ao pretor, dentro de certo prazo. Eram os negócios anuláveis.
(TALAMANCA, p. 227)
Vistos,
em suas linhas gerais, os delineamentos da teoria das nulidades no Direito
Romano, construída pelos modernos, vejamos, agora, os seus reflexos no Direito
Europeu e Brasileiro.
III. Teoria clássica das nulidades
O
que denominamos teoria clássica das nulidades nada mais é que a teoria das
nulidades, formulada pelos romanistas e adotada pelos civilistas,
principalmente, franceses, com reflexos no Code
Napoléon e na legislação posterior de todos os ordenamentos de base
romano-germânica.
Segundo
essa teoria clássica, os atos inválidos seriam nulos, anuláveis ou ineficazes.
Daí teríamos nulidade, anulabilidade e ineficácia.
Na opinião de
Martinho Garcez,
não há no direito objectivo materia mais
difficil e mais complexa do que a das nullidades, e d’ahi a impossibilidade, em
que o jurista se vê, de traçar regras ou princípios geraes.
Merlin, um dos que melhor trataram a materia,
apenas conseguiu estabelecer uma regra geral que é a seguinte: “As nullidades
não podem ser estabelecidas senão por lei, e só a lei tem o direito de pronuncial-as”.
Mas essa regra não é geral, como pretende
Merlin; ella soffre excepções, porque casos há em que a nullidade não está
expressa na lei, e o juiz, entretanto, não pode deixar de declaral-a, porque,
então, a nullidade é uma consequencia logica dos principios geraes do Direito,
na phrase do profundo Zachariae. (GARCEZ, p. 11)
Ainda
nas palavras desse mesmo jurista,
nullidade
é a preterição de qualquer solemnidade essencial a fórma interna ou externa do
acto juridico.
A
nullidade dos actos juridicos só pode ser pronunciada: Iº, quando a lei
expressamente a declara; 2º, quando fôr preterida alguma solemnidade
substancial para a existencia do acto e fim da lei. (GARCEZ, p. 28)
As nulidades se
dividem, segundo ele, em nulidades de pleno direito e nulidades dependentes de
rescisão:
As
nullidades de pleno direito ou nascem da violação das leis prohibitivas,
promulgadas no interesse da ordem publica, porque aquillo que se faz contra a
prohibição da lei é nullo, ainda que não esteja expressamente declarada a
clausula annullatoria; ou nascem das leis constitutivas das formulas ou
condições essenciaes dos actos que ellas instituem.
A
nullidade dependente da rescisão dá-se quando no contracto, valido em
apparencia, há preterição de solemnidades intrinsecas, [...]”.
A
nullidade dependente de rescisão póde ser ratificada.
A
ratificação tem effeito retroactivo; salva a convenção das partes e o prejuizo
de terceiro.
As
nulllidades dependentes de rescisão, resultando da violação das leis que não
têm por fim estabelecer normas fixas, preceitos absolutos e inalteraveis, mas
unicamente determinar os mais preferiveis e melhores de que podem usar as
partes na defesa de seus direitos, e, por isso, chamadas nullidades no
interesse das partes, para distinguir das
que provêm de inobservancia das leis, que têm por fim resguardar a ordem e
interesse publico, e que são chamadas nullidades no interesse da lei, são nullidades suppriveis, e a vontade das
partes póde revalidal-as – Cuique licet renunciare iure in favorem suum
introducto.
A
nullidade dependente de rescisão só póde ser allegada com a prova de prejuizo”.
(GARCEZ, p.35/39)
Os efeitos da
distinção entre nulidade de pleno direito e nulidade dependente de rescisão
são:
Iº
Os contractos nos quaes se dão as nullidades de pleno direito consideram-se
nullos e não têm valor sendo produzidos para qualquer effeito juridico ou
judicial; os contractos, porém, em que intervêm nullidades dependentes de
acção, consideram-se annullaveis e produzem todo seu effeito emquanto não são
annullados pela acção de rescisão.
2º
A nullidade de pleno direito não póde ser relevada pelo juiz, que a deve
pronunciar, se ella consta do instrumento ou de prova litteral; mas a nullidade
dependente de rescisão carece da apreciação do juiz á vista das provas e
circumstancias
A
nullidade de pleno direito póde ser allegada ou pronunciada por meio de acção
ou defeza; mas a nullidade dependente de rescisão deve ser pronunciada por meio
de acção competente.
Quando
a nullidade dependente de rescisão é opposta em defeza, a sentença não annulla
absolutamente o contracto; mas somente deve referir-se ao objecto de que se
trata.
A
nullidade de pleno direito póde ser allegada por todos aquelles que provarem o interesse
na sua declaração; mas a nullidade dependente de rescisão só póde ser opposta
por acção competente pelas partes contractantes, successores e subrogados, ou
pelos credores, no caso do art. 828 do Cod. Comm.
A
nullidade de pleno direito póde ser allegada em qualquer tempo e instancia; a
nullidade dependente de rescisão deve ser reclamada em tempo, e por isso mesmo
desattendida, quando coberta pelo consentimento expresso ou tacito da parte.
Todavia,
a nullidade dependente de rescisão póde ser opposta em defeza sem dependencia
de acção directa rescisora – Iº pelas partes contractantes, successores e
subrogados; 2º pelo terceiro na parte em que é prejudicado e só relativamente a
elle; 3º pelo exequente na execução e pelos credores no concurso de preferencia
para impedirem o effeito de contractos simulados, fraudulentos e celebrados em
fraude de execução.
Só
as nullidades de pleno direito e absolutas podem ser pronunciadas ex-officio. (GARCEZ, p.40/43)
Em
apanhado geral, teríamos, assim:
1. Nulidade de pleno Direito
É
nulo o ato jurídico, quando em razão de defeito grave que o atinge, não produz
os efeitos que deveria produzir. Pode até produzir efeitos, mas não aqueles
efeitos desejados pelas partes interessadas, aqueles efeitos que era para
produzir. Por exemplo, se uma pessoa casada vende bem imóvel seu, sem
autorização de seu cônjuge, o negócio será nulo, não produzindo seu principal
efeito, qual seja, o de transmitir a propriedade do imóvel ao comprador. O
único efeito que tal ato poderá produzir
é o reembolso a que o comprador faz jus, se já tiver pago o preço do imóvel ao
vendedor. Este deverá restituir-lhe o dinheiro. Mas esse não é efeito normal da
compra e venda.
A
Lei Brasileira considera nulo o ato jurídico, quando praticado por pessoa absolutamente
incapaz, quando seu objeto for impossível, ou quando não revestir forma
adequada. Em outras palavras, sempre que o ato não observar as condições de
validade dos atos jurídicos. Também será nulo o negócio simulado.
Mas
não só nesses casos os atos jurídicos serão nulos.
Além
desses casos genéricos, serão nulos os atos jurídicos, sempre que a Lei assim o
determinar, de maneira difusa, ou quando a Lei imputar ao negócio a pena de
invalidade, sem especificar se nulo ou anulável.
Outra
observação importante é a de que a nulidade pode ser total ou parcial. Às vezes
a Lei diz ser nula apenas parte do ato e não ele inteiro. O Código do
Consumidor, por exemplo, sanciona com nulidade somente as cláusulas abusivas.
Assim, se em determinado contrato houver cláusulas abusivas contra o
consumidor, pode ser que sejam nulas apenas estas, e não o contrato inteiro.
A
nulidade pode ser alegada por qualquer interessado, inclusive pelo Ministério
Público e pelo juiz, ex officio.
Aliás, é dever do juiz anular de ofício os atos inquinados de defeito grave.
2. Anulabilidade
O
ato será anulável, quando inquinado de defeito leve, passível de convalidação.
O ato é imperfeito, mas não tanto e tão
profundamente afetado, como nos casos de nulidade, razão pela qual a Lei
oferece aos interessados a alternativa de requerer sua anulação, ou deixar que
produza seus efeitos normalmente. É o caso do menor relativamente incapaz que
realiza negócio, sem assistência de seus pais ou tutor. Estes podem requerer a
anulação do negócio, ou não.
São,
pois, anuláveis, para o Direito Brasileiro, os atos praticados por todas as
pessoas relativamente incapazes, e aqueles atos eivados de erro, dolo, coação,
fraude contra credores, lesão e estado de perigo.
Além
destes casos, são anuláveis os atos jurídicos, sempre que a Lei assim o
determinar, de modo esparso.
A
anulabilidade, ao contrário da nulidade, só pode ser requerida pelos que dela
se beneficiem, ou seja, pelos interessados; jamais de ofício, pelo juiz.
3. Ineficácia
É ineficaz o
ato jurídico, quando for válido entre as partes interessadas, e inexistente
perante terceiros. Em outras palavras, o ato vale entre as partes, sendo
totalmente ineficaz perante as demais pessoas.
O
melhor exemplo é o do carro vendido, sem a respectiva transferência nos
registros do DETRAN. Ou seja, o carro é vendido, mas continua em nome de seu
antigo dono. A venda é ineficaz: é
válida entre comprador e vendedor, mas para terceiros o carro continua sendo do
antigo dono, até ser efetuada a transferência nos registros. As eventuais
multas serão enviadas para o antigo dono, que, em princípio, poderá até ter que
pagá-las, regressando, depois, contra o adquirente.
Além
dos atos inválidos, haveria os inexistentes.
A
inexistência dos atos jurídicos se dá, sempre que o ato contiver defeito tão
grave que nem chega a existir. Falta-lhe pressuposto ou elemento essencial de
existência. É diferente dos atos inválidos, porque estes existem, não
produzindo, porém, os efeitos almejados. Os atos jurídicos inexistentes, nem
chegam a existir. Não necessitam ser anulados. O máximo que se pode requerer é
a declaração de sua inexistência.
A
teoria dos atos inexistentes foi imaginada pelo alemão Zacchariae, aceita por
Démolombe, divulgada por Aubry et Rau e desenvolvida pela doutrina francesa e
italiana, até chegar a nós, no Brasil,
apesar do Código Civil não a ter tutelado. (PEREIRA, p. 447; AUBRY ET RAU, p.
234)
Exemplo
de ato inexistente é o testamento verbal. Repetindo, serão inexistentes os atos
aos quais faltar elemento essencial. Também se consideram inexistentes aqueles
atos cuja nulidade não houver de ser pronunciada pelo juiz. É que, na verdade,
não são defeituosos, mas inexistentes, no sentido de que não devem ser
considerados. Tal é o caso das condições fisicamente impossíveis.
Revolvendo
a doutrina e a legislação de alguns países europeus, verifica-se que a teoria
clássica predomina imperiosamente.
Para Emilio Betti,
el estudio que hemos de acometer
demonstrará la oportunidad de mantener diferenciados los dos órdenes de
problemas: Los concernientes a la diagnosis de la anormalidad e los que atañen
a su tratamiento jurídico. [...] La oportunidad de distinguir los dos órdenes
de problemas, resulta, además, del hecho de que no siempre el Derecho puede
considerarse satisfecho con atribuir a la anormalidad del negocio la invalidez
como consecuencia constante y exclusiva.
Un negocio de la vida real puede
no ser apto para desplegar, al menos en forma duradera, todos los efectos que
el derecho acompaña al tipo abstracto a que aquél pertenence. La calificación
de inválido o ineficaz, que entonces se le adjudica, presupone, precisamente,
un cotejo, entre el negocio concreto que se considera y el tipo o género de
negocio que éste pretende representar. Y expressa una apreciación negativa que
es, en cierto modo, el reverso de aquella outra, positiva, que hace la ley
respecto al negocio-tipo, al que faculta para producir nuevas situaciones
jurídicas.
Es evidente la oportunidad de
clasificar diferentemente la carencia de efectos, según que dependa de defectos
intrínsecos o de circunstancias extrínsecas al negocio jurídico en sí considerados;
ponderables, los primeros, en el momento mismo en que el negocio surge o debe
tomar vigor; los segundos, en cambio, sólo sobre el negocio concluído y
perfecto, y tales que dan lugar a su caducidad. El criterio discriminador es el
ahora enunciado. Se denomina inválido, propiamente, el negocio en el que falte
o se encuentre viciado alguno de los elementos esenciales, o carezca de uno de
los presupuestos necesarios al tipo de negocio a que pertenence. Invalidez es
aquella inidoneidad para producir los efectos esenciales del tipo que deriva de
la lógica correlación establecida entre requisitos y efectos por el dispositivo
de la norma jurídica y es, conjuntamente, la sanción del deber impuesto a la
autonomía privada de utilizar medios adecuados para la consecución de sus fines
propios. Se califica, en cambio, de simplemente ineficaz el negocio en el que
están en regla los elementos esenciales y los presupuestos de validez cuando,
sin embargo, impida su eficacia una circunstancia de hecho extrínseca a él”. (BETTI,
p. 348/349)
Quanto aos negócios
inexistentes, Betti se posiciona:
Se ofrecen casos en los que
puede hablarse de verdadera inexistencia jurídica del negocio que se há
pretendido realizar, en cuanto que no existe de él más que una vacía aparencia,
la cual, si puede haber engendrado en alguno de los interesados la impresión
superficial de haberlo verificado o asistido a él, no produce, sin embargo, y
en absoluto, efectos jurídicos, ni siquiera de caráter negativo o divergente.
Por el contrario, la estimación de un negocio como nulo presupone, por lo
menos, que el negocio exista como supuesto de hecho
que, por tanto, exista una figura exterior de sus elementos eventualmente capaz
de engendrar algún efecto secundario, negativo o divergente, aunque esta figura
se revele luego inconsistente ante un análisis más profundo. Si, por ejemplo,
nos encontramos con una propuesta contractual y una declaración en función de
aceptación, pero cuyo contenido sea tan evidentemente contrario al contenido de
la propuesta que no pueda existir sobre ello ningún malentendido, la
combinación de estos actos no da lugar a uno contracto nulo, sino que no
origina ningún contrato y, por tanto, ni a una acción contractual ni a una
acción de daños por confianza fundada en la validez del contracto. (BETTI,
p. 352)
Nos dizeres desse mesmo autor,
es nulo el negocio que, por
falta de algún elemento esencial, es inapto para dar vida a aquella nueva
situación jurídica que el Derecho apareja al tipo legal respectivo, en
conformidad com la función económico-social que le es característica; nulo,
aunque acaso pueda producir alguno de los efectos correspondientes, u otros
distintos, de carácter negativo o contradictorio (ya que de outro modo más bien
sería inexistente). Anulable, en cambio, se denomina al negocio que, aun no
careciendo de los elementos esenciales del tipo y hasta originando la nueva
situación jurídica que según el Derecho acompaña a aquél, puede – tras la
reacción de la parte interesada – ser removido com fuerza retroactiva y
considerado como si nunca hubiera existido. La nulidad surge aquí sólo por
efecto de sentencia (constitutiva), cuando un interessado tome la iniciativa de
hacerla pronunciar por el Juez, como consecuencia de los vicios que al negocio
afectan. La anulabilidad corresponde a deficiencias del negocio menos graves
que las que procucen la nulidad. En general, se puede decir que la anulabilidad
se presenta cuando falte un presupuesto de validez, o bien,
cuando un elemento esencial del negocio se halle simplemente viciado, mientras que se tiene nulidad sólo cuando
un elemento del negocio está, precisamente, ausente.
Así, es natural que la nulidad,
al contrario que la anulabilidad, no se prescriba y no se sane, según
principio, por confirmación o ratificación sucesiva, aunque sea abstractamente
concebible una diferente regulación de este punto.
La invalidez que no tenga
carácter absoluto o irremediable puede ser subsanada de diferentes modos, con
efecto normalmente retroactivo entre las partes. (BETTI, p. 353/365)
O Código Civil Italiano contém as seguintes normas a
respeito do tema, verificando-se, entretanto, que não há disposições de caráter
genérico, mas referentes a uma espécie de negócios jurídicos, qual seja, os
contratos.
Art.
1.418. O contrato é nulo, quando contrário a normas imperativas, salvo quando a
Lei disponha diversamente.
Tornam
nulo o contrato a falta de um dos requisitos indicados no art. 1.325, a
ilicitude dos motivos, no caso indicado no art. 1.345, e a falta no objeto dos
requisitos estabelecidos no art. 1.346.
O
contrato também será nulo nos outros casos estabelecidos em lei.
Art.
1.421. Salvo nos casos de disposição legal em contrário, a nulidade pode ser
arguida por qualquer interessado e pode ser pronunciada de ofício pelo juiz.
Art.
1.422. A ação declaratória de nulidade não se sujeita a prescrição, salvo os
efeitos do usucapião e da prescrição das ações de repetição.
Art.
1.423. O contrato nulo não pode ser convalidado, a não ser que a Lei disponha
de modo diverso.
Art.
1.425. O contrato é anulável se uma das partes era legalmente incapaz de
contratar.
É
também anulável, quando ocorrerem as condições estabelecidas no art. 428,
contrato celebrado por pessoa incapaz de entender e de querer.
Art.
1.441. A anulação do contrato pode ser demandada apenas pelos interessados,
indicados em lei.
A
incapacidade do interdito pode ser arguida por qualquer interessado.
Art.
1.442. A ação anulatória prescreve em cinco anos.
Art.
1.444. O contrato anulável pode ser convalidado por quem tenha legitimidade
para anulá-lo, mediante ato que contenha a menção do contrato e do motivo da
anulabilidade, bem como declaração de que se deseja convalidá-lo.
O Código Civil Francês é pobre
sobre o assunto. Apenas um artigo tem caráter, mais ou menos, genérico.
Art.
1304. Em todos os casos em que a ação anulatória ou de rescisão de uma
convenção não estiver limitada a tempo menor por lei especial, esta ação durará
cinco anos.
Planiol
faz diferença entre atos nulos e inúteis, asseverando que,
o
ato nulo assemelha-se ao inútil pela
ausência de efeitos, mas a diferença consiste em que a esterelidade do ato nulo
provém da vontade do legislador e a do ato inútil da vontade das partes ou da
natureza das coisas. Por exemplo, um ato, cuja condição não se implementa, se
torna inútil; o mesmo ocorrerá se faltar o objeto; uma venda, por exemplo, se a coisa vendida já pereceu ou nunca
existiu. O ato é regular do ponto de vista jurídico; não é nulo, é inútil.
Falta-lhe seu efeito, sem que o legislador tenha necessidade de intervir, e ele
não dependeria do legislador para se tornar eficaz. (PLANIOL, p. 123)
Acrescenta
o mestre francês que,
a
teoria das nulidades é uma das mais obscuras que há no Direito Civil.
Entretanto, deveria ser bastante simples, possuindo mesmo essa simplicidade nos
primeiros tempos do Direito Romano: o ato nulo não existia para a lei, não
existia, nem produzia efeitos jurídicos; nada existia.
A
matéria das nulidades começou a se complicar no Império Romano, graças ao
Direito Pretoriano. O pretor, não podendo, por si mesmo, anular um ato que o
Direito Civil declarava válido, concedia, porém, uma espécie de reparação tão
plena quanto possível, por meio de procedimento particular, a in integrum
restitutio. Dizia-se, por exemplo, que um
menor beneficiava-se da restituição ou que o contrato por ele celebrado estava
rescindido (restituitur, rescinditur). Esse procedimento (que entra na categoria
geral das ações) foi, com a exceção de dolo, um dos dois grandes meios que o
pretor empregou em sua luta contra o Direito Civil. Desde então, havia no
Direito Romano duas maneiras para um ato ser nulo: havia a nulidade civil, que
se produzia de pleno Direito, automaticamente; e, ao lado dela, a nulidade
pretoriana, que supunha o exercício de ação judicial e não se realizava que em
virtude de sentença judicial.
Se
tivesse ficado por aí, a teoria das nulidades seria ainda bastante simples.
Infelizmente, diversas causas exteriores vieram truncá-la. As duas principais
causas de complicação foram, de início, a necessidade de se recorrer à
Justiça, em qualquer hipótese, havendo
desavença quanto à existência da nulidade; depois, a imprecisão da
linguagem empregada a propósito das
nulidades. Em nossos dias, uma terceira causa veio se juntar às duas primeiras:
a criação de nova categoria, a dos atos inexistentes. (PLANIOL, p. 123/124)
Conclui
Planiol que,
em
suma, a grande diferença que separa os autores consiste no seguinte: uns
admitem nulidades, produzindo seu efeito de pleno Direito e sem julgamento, em
virtude de lei; outros não concebem que tal resultado possa se produzir e
exigem sempre sentença judicial para que o ato, uma vez aperfeiçoado, seja
reduzido ao estado de ineficácia jurídica. (PLANIOL, p.126)
Para ele,
nada
seria mais simples do que fixar a linguagem. Temos três palavras à nossa
disposição: anulável, nulo e inexistente, e três situações para distinguir: 1ª o ato que a Lei não precisa
anular, porque não chegou a existir; 2ª o ato anulado de pleno Direito pela
Lei; 3ª o ato anulado por sentença. A palavra ‘inexistente’ designaria os atos
da primeira classe; a palavra ‘nulo’ os da segunda e a palavra ‘anulável’ os da
terceira. [...] Para concluir, diremos que, por um lado, seria lastimável abandonar a
ideia de uma nulidade operando seus efeitos de pleno direito, independentemente
de julgamento. É tradição histórica certa [...].
Em
seu juízo, “a nulidade de pleno Direito é a verdadeira nulidade, aqule que
sanciona, em princípio, as proibições da Lei. [...] a simples anulabilidade é exceção, que ocorre em certos casos e por
razões determinadas”.
A
nulidade de pleno Direito é obra direta do legislador, que declara nulo o que
foi feito. Não há necessidade de se intentar, propriamente, ação anulatória: o juiz não tem que cassar esse ato que a
Lei não reconhece; a Lei mesma se encarrega disso. [...] o juiz se resumirá a constatar a nulidade;
não a decretará. (PLANIOL, p. 126/130)
Quanto
à necessidade da intervenção judicial, Planiol explica que, “por outros termos,
a intervenção dos tribunais, nos casos de nulidade absoluta, se fundamenta,
unicamente, no princípio de que a ninguém é dado fazer justiça com as próprias
mãos, e não na necessidade de cassar um ato já anulado pela Lei”. (PLANIOL, p.
125)
Seriam
características dos atos nulos:
- “a nulidade é imediata;
-
todo interessado pode arguir a nulidade;
-
a nulidade não pode ser reparada por um dos
interessados;
-
a nulidade não está sujeita a prescrição”. (PLANIOL, p.
130/131)
A
anulabilidade seria, para Planiol,
uma
medida de proteção para determinada pessoa. [...] Essa espécie particular de nulidade difere da verdadeira
nulidade, não somente por suas causas, mas também por seu modo de ação, ou seja, pelo modo como ela produz a
invalidação dos efeitos jurídicos do ato aperfeiçoado. Para o ato simplesmente
anulável, a nulidade não se produz de pleno Direito; é mister demandá-la em
juízo para que seja pronunciada pela autoridade judiciária. Ela supõe,
assim, necessariamente, a propositura de uma ação, conforme sua origem histórica, que é a ‘in integrum restitutio’
pretoriana. Essa ação se denomina, em geral, ação anulatória. (PLANIOL, p. 131/132)
Aponta ele
como características dos atos anuláveis:
-
“a nulidade não é imediata;
-
a ação
anulatória não pode ser intentada por qualquer um;
-
a nulidade pode
ser sanada por confirmação;
-
a ação
anulatória não prescreve”. (PLANIOL, p. 132)
O Código Civil Alemão é bastante pobre e assistemático. Cuida da matéria
de modo casuístico, com pouquíssimas normas genéricas sobre o tema.
O
§ 119, por exemplo, trata da anulabilidade por erro: “(1) Quem incorrer em erro
quanto ao conteúdo de sua vontade, ou mesmo quanto ao simples fato de
declará-la, poderá anular a emissão dessa vontade, sempre que se provar que a
não teria declarado, se conhecesse a verdadeira situação da coisa ou as
circunstâncias reais do caso”. O § 121 trata do prazo decadencial para a
propositura da ação anulatória nos casos de erro. O § 125 cuida da nulidade por
defeito de forma. Não é de se copiar a sistemática legal das nulidades no
Direito Alemão.
A
respeito da anulabilidade (Anfechtbarkeit)
por erro, Peter Bähr afirma que, “enquanto o negócio não for anulado,
permanecerá eficaz; só a anulação conduzirá à nulidade. O interessado poderá,
assim, reparar o erro, não anulando o negócio.
[...]
O
interessado poderá ou não anular o negócio, dentro de certos limites, pois o
contrário seria intolerável para a outra parte. Há, portanto, um prazo, cujo
transcurso extingue o direito à anulação”. (BÄHR, p. 104)
Quanto
aos negócios nulos (nichtige
Rechtsgeschäfte), assevera esse autor que, “a nulidade (Nichtigkeit) significa que o negócio em
questão será ineficaz, desde o início, sem mais. [...] Um contrato, desde o início,
não terá, por exemplo, qualquer força vinculante, nem transmitirá qualquer
direito”. (BÄHR, p. 120, 104)
Afirma,
outrossim, esse autor alemão que, “defeitos de forma são fundamentalmente
insuperáveis. Restará ao interessado apenas a possibilidade repetir o negócio,
ratificando-o, pois. A eficácia do negócio terá início, porém, apenas após sua
convalidação”. (BÄHR, p. 121)
Dos quatro
países pesquisados, o que melhor sistematizou a matéria em seu Código Civil,
foi a Rússia.
Art. 166. Negócios nulos e anuláveis (nitchtozhnye i osporimye sdelki)
1. O
negócio será inválido pelas razões determinadas neste Código, desde que o
invalide o juiz (negócio anulável - osporimaya sdelka), ou
independentemente dessa invalidação (negócio nulo - nitchtozhnaya sdelka).
2. A
ação anulatória nos casos de anulabilidade poderá ser proposta por todas as
pessoas indicadas neste Código.
A ação anulatória nos casos de nulidade
poderá ser proposta por qualquer interessado. O juiz tem o direito de aplicar a
nulidade de ofício.
Art. 167. Normas gerais sobre os efeitos
do negócio inválido
1. O
ato jurídico inválido não produz quaisquer efeitos, à exceção daqueles
vinculados a sua invalidade. A invalidade se considera a partir do momento em
que o negócio se realizou.
2. [...]
3. Se
do conteúdo do negócio anulável decorrer que só possa ser ele invalidado para o
futuro, o juiz o invalidará para o futuro.
Kunik afirma que,
para
que o negócio seja válido, várias requisitos devem ser observados: é
indispensável que seus partícipes sejam capazes; a vontade declarada deve
retratar a real vontade das partes; o conteúdo do negócio deve ser lícito; a
forma deve ser adequada.
A falta de qualquer um desses requisitos
pode trazer consigo a invalidação do negócio. Um negócio assim viciado não
produz aqueles efeitos jurídicos, desejados pelas partes.
Todos os negócios inválidos se dividem em dois grupos: a) absolutamente inválidos (nulos – nitchtozhnye) e b) relativamente inválidos (anuláveis – osporimye).Nulos são aqueles negócios, inválidos por força de lei, independentemente de qualquer declaração de nulidade.
Todos os negócios inválidos se dividem em dois grupos: a) absolutamente inválidos (nulos – nitchtozhnye) e b) relativamente inválidos (anuláveis – osporimye).Nulos são aqueles negócios, inválidos por força de lei, independentemente de qualquer declaração de nulidade.
Anuláveis são aqueles negócios, cuja
invalidação depende de declaração judicial, requerida por algum interessado. (KUNIK, p. 67)
Concluindo,
de uma maneira geral, afirmam os clássicos que os negócios nulos o são pleno iure, não sendo, pois, necessária
a anulação judicial. O juiz não anula o que já é nulo, apenas declara a
nulidade já existente por força de lei, até mesmo de ofício. Sendo assim, os
negócios nulos não produzem efeitos; a sentença declaratória da nulidade opera ex tunc; não há possibilidade de
convalidação futura, bem como não há prazo para o exercício do direito de
pleitear a declaração judicial de nulidade.
Quanto
aos negócios anuláveis, assevera a doutrina clássica, em geral, que não sendo
nulos de pleno Direito, devem ser anulados pelo juiz, que só pode agir por
provocação de algum interessado. Além disso, os negócios anuláveis produzem
efeitos até a anulação judicial, que opera, segundo alguns, ex nunc. São, ademais, passíveis de eventual convalidação,
expressa ou tácita, uma vez que, se o interessado deixar correr in albis o prazo decadencial para a
anulação, o negócio defeituoso estará sanado.
Estes,
em síntese, os principais contornos da teoria clássica. Vejamos, agora, seus
pontos criticáveis.
IV. Crítica à teoria clássica das
nulidades
De início,
deve-se ressaltar que as críticas à doutrina clássica dizem respeito aos atos
nulos e anuláveis, visto que, em relação aos ineficazes e inexistentes, a
doutrina foi, razoavelmente, bem construída, apesar de uma ou outra pequena
falha.
Os primeiros
críticos da teoria clássica, segundo Planiol, foram Aubry et Rau e Laurent.
Laurent,
que consagrou a essa matéria longas análises, toma a palavra nulo como sinônima de anulável, e reserva essas duas expressões para
designar os atos anuláveis por sentença judicial, em consequência de ação
anulatória; em seguida, imputa o termo atos inexistentes àqueles que são anulados pela Lei, de pleno
Direito. (PLANIOL, p. 126)
Interpretados
por Planiol, Aubry et Rau teriam se pronunciado como Laurent:
a
nulidade jamais ocorreu de pleno Direito, em virtude de lei, mesmo nos casos em
que o texto legal a qualifica de nulidade de Direito ou de nulidade de pleno
Direito; deve ser sempre pronunciada por sentença. [...] Consequentemente, o ato nulo permanece
eficaz, enquanto não for anulado pelo juiz, mesmo que a nulidade se fundamente
em motivos de ordem pública. [...] O
legislador quis simplesmente privar o juiz de seu poder discricionário e
obrigá-lo a impor a nulidade, sempre que se lho demandar. (PLANIOL, p. 126)
De fato, Aubry
et Rau defendem esse ponto de vista em sua obra, afirmando que
toda
nulidade deve, como regra geral, ser decretada por sentença. A esse respeito,
não há distinguir os casos em que a Lei se resume a prever contra um ato uma
ação anulatória, daqueles outros casos em que a própria Lei anula o ato, seja
de maneira pura e simples, seja com a adição das palavras de Direito ou de pleno Direito. Os atos maculados de
nulidade são eficazes, enquanto não forem anulados pelo juiz. (AUBRY ET RAU, p. 234)
Comentando
o art. 41 do Decreto de 1º de março de 1808, o art. 28 da Lei Comunal de 21 de
março de 1831 e os arts. 23 e 24 da Lei de 5 de maio de 1855, Aubry et Rau
continuam, afirmando que
todos
esses textos provam que, na linguagem jurídica francesa, os termos nulidade de
direito ou de pleno direito não exprimem a ideia de nulidade, que dispensaria a
intervenção judicial. Destinados a
interpretar a intenção do legislador, esses termos não possuem significado
adequado e invariável: o sentido que se lhes atribui é determinado secundum
subiectam materiam. (AUBRY ET RAU, p. 234/235)
Sobre a
possibilidade de ratificação dos atos nulos ou anuláveis, escrevem que “as
nulidades são, dentro de certos limites, que serão explicados nos §§ 337 e 339,
suscetíveis de convalidação pela ratificação ou pela prescrição”. (AUBRY ET RAU, p. 235)
Em suma,
afirmam esses juristas franceses que não há nulidade de pleno Direito. Todo ato
defeituoso, seja o vício leve ou grave, deverá ser anulado judicialmente. Antes
da sentença anulatória, nenhum ato será nulo.
No Brasil, o
primeiro a adotar as críticas francesas foi Valle Ferreira, seguido por Aroldo
Plínio Gonçalves, segundo os quais cabem na teoria clássica alguns reparos de
absoluta pertinência.
Valle
Ferreira, muito sabiamente, ressalta que
são
por demais conhecidos os embaraços que se apresentam a um estudo mais sério das
nulidades, e parece bem certo que tais dificuldades se agravam em consequência
da opinião divergente dos autores. Estes, em seus estudos, além de variarem na
linguagem e na inteligência dos textos que examinam, quase sempre se prendem a
fatos de outros tempos, ou a circunstâncias de outros lugares. (VALLE
FERREIRA, p. 29)
Em
primeiro lugar, um ato só pode ser dito nulo, após o pronunciamento de sua
nulidade por sentença judicial. Em outras palavras, só se pode falar em ato
nulo, depois de ser ele invalidado pelo juiz. Antes de ser pronunciado nulo,
teríamos apenas ato defeituoso, viciado. A nulidade seria espécie de penalidade
imposta a atos defeituosos. (GONÇALVES, passim)
A
afirmação de que a nulidade não requer pronunciamento judicial não procede
absolutamente. O art. 146 diz poderem ser as nulidades alegadas por qualquer interessado ou pelo Ministério Público,
dependendo de seu interesse. Ademais, caberá ao juiz pronunciá-las de ofício,
se delas tomar conhecimento. Em outras palavras, é necessária a intervenção do
juiz, para que se aplique pena de nulidade a ato defeituoso. E pouco importa a
discussão acadêmica, se a atuação do juiz é no sentido de decretar ou apenas
declarar a nulidade. O que interessa é que o juiz deverá se pronunciar, sem o
que o ato não será invalidado. A sentença que declara nulo um ato tem caráter
constitutivo negativo. Em outras palavras, visa desconstituir relação ou
situação jurídica. (PONTES DE MIRANDA, passim)
A
favor da natureza constitutiva da ação anulatória, já se posicionava Serpa
Lopes, dando, para tanto, o exemplo do menor de 16 anos que assina escritura de
confissão de dívida. Não é necessária ação para se reconhecer a nulidade da
escritura, que se opera pleno iure.
Ora, não seria tampouco necessária ação anulatória, se o menor fosse
relativamente incapaz, e neste caso a escritura seria anulável. A verdade é que
não interessa esse primeiro momento. Interessa sim é o momento em que o menor
assina a escritura, paga a dívida e vem o representante querendo anular o
negócio e restituir-se do pagamento. Neste momento, tanto faz se o ato é nulo
ou anulável. A ação é fundamental e tem caráter constitutivo negativo. (SERPA
LOPES, p. 453/454)
Ato
anulável, a seu turno, seria todo ato possuidor de defeito, antes de ser
anulado por sentença. Dessa forma, denominam-se atos anuláveis todos aqueles
atos que a doutrina tradicional chama de nulos e anuláveis.
Anuláveis
por quê? Porque defeituosos, viciados, mas ainda não invalidados pelo juiz, que
só o fará, mediante requisição dos interessados, ou de próprio ofício,
dependendo do defeito que atinja o ato.
É
como assevera Valle Ferreira, em relação ao Código de 1916 (e o mesmo vale para
o de 2002):
O
Código Civil (arts. 145 e 147) dispõe quanto aos casos de imperfeição e
daquelas leis facilmente se vê que a diferença entre ato nulo e anulável apenas
se encontra na causa da invalidade.
Assim,
a referida divisão tem irrecusável utilidade prática no processo de punir a
infração da lei, porque orienta quanto aos modos
de pronunciar a invalidade, à forma
de alegá-la e às pessoas qualificadas
para fazê-lo.
Ficará
demonstrado que, uma vez pronunciada a nulidade, não há qualquer diferença
quanto a seus efeitos. (VALLE FERREIRA, p. 30/31)
Um
ato anulável pode conter defeito leve ou grave.
Leve
é o defeito que pode ser emendado pelas partes, daí só poderem requerer a
anulação do ato aqueles que dela se beneficiem.
Grave
é o defeito que, uma vez suscitado, não admite correção; daí ter o juiz o dever
de anular o ato, de ofício.
Como
saber se o defeito é leve ou grave?
A
resposta será dada pela Lei. No Direito Brasileiro, é grave o defeito relativo
à não observância das condições de validade dos atos jurídicos, ou seja,
sujeito capaz, objeto possível e forma adequada, além de outros casos
específicos. Um ato inquinado por defeito grave pode nem chegar a produzir seus
principais efeitos, como no caso da compra e venda de imóveis sem a outorga do
cônjuge do vendedor, em que, não se admitindo o registro da escritura, a
transmissão da propriedade não ocorrerá. Mas, se por falha do cartório, a
escritura de compra e venda for registrada, a propriedade do imóvel,
aparentemente, se transmite ao comprador, apesar do defeito grave do ato.
Posteriormente, porém, poderá ser anulado, a qualquer tempo, seja a
requerimento de algum interessado ou de ofício, pelo juiz. Afinal, o defeito é
grave, e a propriedade só aparentemente se transferiu para o comprador. Mas se
ninguém jamais requerer a anulação, o ato perdurará como se fosse perfeito. De
fato, então, terá havido transmissão da propriedade.
Vimos,
portanto, que os atos que contêm defeitos graves, ditos nulos pela doutrina
tradicional, podem produzir efeitos, até que sejam anulados.
Outro
exemplo esclarecedor é o de menor absolutamente incapaz, que aluga imóvel seu.
Posto ser a locação portadora de vício grave, produzirá seus efeitos normais.
Poderá ser anulada pelo representante do incapaz, o que não faz com que se
devolvam os aluguéis já pagos. Caso o menor tivesse que devolver os aluguéis,
haveria enriquecimento ilícito por parte do inquilino que teria morado de
graça, aproveitando-se, pois, da incapacidade do locador. Fica, portanto,
provado que, nem sempre, os atos ditos “nulos” não produzem os efeitos que
deveriam produzir. Na hipótese da locação, como vimos, produziu-os de fato e de
Direito.
Já
os defeitos leves são, em nosso Direito, a incapacidade relativa do agente, o
erro, o dolo, a coação, a simulação e a fraude contra credores, além de outros
casos específicos.
Se
o defeito é leve, vale dizer que pode ser corrigido. Em outras palavras, as
partes podem convalidar o ato viciado, tornando-o válido. Se menor, com 17
anos, realiza negócio, sem autorização
de seu assistente, o ato será evidentemente anulável, por ser viciado,
defeituoso. Isso não impede, todavia, que o assistente desse incapaz dê seu
consentimento, ainda que a posteriori,
convalidando o ato. Consequência lógica é que só os interessados podem requerer
ao juiz a anulação do ato, não se admitindo jamais a declaração da nulidade, ex officio. O requerimento há de ser
feito dentro de prazo fixado em lei, operando-se decadência, após seu decurso.
Alguns
adeptos da doutrina tradicional apregoam que a sentença anulatória, tratando-se
de defeito grave, opera ex tunc e,
tratando-se de defeito leve, opera ex
nunc. Em outras palavras, se o defeito for grave, os efeitos do ato serão
anulados desde sua realização. Já se o defeito for leve, anular-se-ão os
efeitos, somente a partir da prolação da sentença anulatória; os efeitos
passados considerar-se-iam válidos.
É
totalmente absurda a tese. De fato, uma vez anulado o ato, procurar-se-á,
sempre que possível, restabelecer o status
quo ante, ou seja, a situação anterior a ele. A ação anulatória tem sempre
caráter constitutivo negativo. O que se almeja, em quaisquer circunstâncias, é
a invalidação do ato e de todos os seus efeitos, desde o momento em que se o
realizou. O que ocorre, porém, é que alguns efeitos não podem ser anulados,
seja por força de lógica, seja por força de conveniência social, ou pelos dois
motivos.
Aliás,
muitos dos defensores da corrente tradicional já apontam para esse princípio.
Nesse rol podemos citar, dentre outros, Peter Bähr, Planiol e Kunik.
Imaginemos
o mesmo caso do contrato de locação celebrado por locador absolutamente
incapaz, sem a interveniência de seu representante. O contrato poderá ser
anulado, mas os aluguéis já pagos não serão devolvidos. Nessa hipótese,
trata-se de defeito grave. Os efeitos do ato, porém, não foram anulados em sua
totalidade. Imaginemos outro exemplo, em que uma pessoa relativamente capaz
venda seu carro, sem a anuência de seu assistente. O defeito é leve, a venda é,
portanto dita “anulável”. Contudo, uma vez anulada, devolver-se-á o carro e se
restituirá o preço. Neste caso, embora leve o defeito, os efeitos do ato não
foram mantidos.
Outro
ponto criticável é o princípio segundo o qual os defeitos graves, que inquinam
os atos ditos nulos, não seriam convalidáveis. A tese não pode prosperar. Se
isso é fato, após a sentença anulatória, também o é para os defeitos leves dos
atos ditos anuláveis. Antes da ação anulatória, tanto os defeitos graves (em
grande parte), quanto os leves, podem ser reparados.
Vejamos
um exemplo. Um menor, absolutamente incapaz, aluga um imóvel seu, sem a
interveniência de seu representante legal. O ato contém defeito grave, sendo
dito, assim, “nulo de pleno Direito”. Não poderia ser convalidado, segundo os
clássicos. Ocorre que, tomando dele conhecimento, o representante legal além de
não fazer nada para anular o negócio, ainda assina o contrato, para evitar
qualquer eventual discussão. Como dizer, neste caso, que o vício não foi
reparado? Que o ato é defeituoso? A anulação desse contrato seria fundada em
quê?
A
verdade é que a teoria clássica se baseou na teoria das nulidades do Direito
Romano e esta, por sua vez, foi engendrada a partir de falsos pressupostos,
oriundos de má leitura dos textos e da própria sistemática romana.
Como
bem enfatizam Aubry et Rau, tampouco no Direito Romano, pode-se dizer, havia
atos nulos de pleno Direito. Superada a fase da vingança privada; vindo o
Estado a se assenhorar da jurisdição, mesmo que parcialmente, no início, já não
mais é cabida a afirmação de que os atos gravemente viciados eram nulos pleno iure, dispensando a anulação
judicial. Tais eram, aliás como hoje, os atos inexistentes. Os atos
defeituosos, fosse o defeito grave ou leve, tinham que ser invalidados pelo
magistrado ou pelo iudex, sem o que
produziriam seus efeitos normais. Os mesmos exemplos dados acima, podem
ilustrar o Direito Romano. A sistemática não mudou.
V. Conclusão
Concluindo,
a se adotar a melhor tese, os atos defeituosos são, em qualquer caso, sempre
anuláveis. A anulação se dará a requerimento dos interessados, ou de ofício
pelo juiz, em prazo estipulado em lei, ou a qualquer tempo, dependendo da
natureza do vício, se leve ou grave, respectivamente. Além dos anuláveis,
haveria também atos ineficazes, possuidores de defeito que os tornaria sem
efeitos apenas em relação a terceiros. Já os atos inexistentes são aqueles a
que falta pressuposto de existência, não chegando mesmo a se configurar na
esfera do Direito.
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Ótimo texto.
ResponderExcluirBom dia, ótimo texto um presente.
ResponderExcluir